terça-feira, novembro 07, 2017

A solidão das mulheres bonitas





Ao fim do dia, Benedita telefonou à mãe a perguntar se podia lá ir jantar. Sentia falta de conversa de mãe. Não que alguma vez tivesse tido grandes conversas com a mãe mas gostava de pensar que sim.  Inventava memórias com essas inexistentes conversas.

Naquele dia em particular, gostava de poder estar à mesa com a mãe e gostava que ela lhe perguntasse o que se passava para ela lhe dizer que nada, mas, depois, perante o olhar interrogador da mãe, confessar que andava sem rumo. Mas a mãe atalhou o devaneio: que devia ter comido alguma coisa que lhe tinha caído mal, que não ia jantar, só beber chá. Benedita ainda lhe perguntou se queria que ela lá fosse mas Iolanda disse que não, que estava quase a ir meter-se na cama, que ficava bem.

Benedita ficou triste. Pensou que sentir-se carente seria aquilo. Depois, a recordação da irmã. Tão diferente a irmã, tão, tão diferente. Depois de mil aventuras, tinha ido para Barcelona. Pensou, com um sorriso no pensamento, que, àquela hora, andaria ela envolta na bandeira da Catalunha, mais independentista que o mais independentista dos catalães. Como estranhas, pareciam nada ter a ver uma com a outra. Nunca se telefonavam. Viria, talvez, passar o Natal. Contudo, a verdade é que Benedita sentia falta da leveza de espírito e da alegria da irmã. Sempre que pensava nela, recriminava-a: insconsciente, irresponsável. E, no entanto, tanto que gostava de ter herdado um pouco dessa alegre leviandade.

Os avós moram longe. Nunca foram próximos. São pessoas simpáticas mas as afinidades são poucas. Do pai pouco se lembra. 

A verdade é que Benedita tem poucos amigos. De resto, também prefere ficar sozinha, deitada, de olhos fechados, ouvindo palavras na sua cabeça, ouvindo dizer poesia na internet, música, divagações assim.


Outras vezes põe-se à janela a ouvir os pássaros nas árvores ao fim da tarde, ou, mais esporadicamente, vai ao cinema. Não vai muito às aulas nem dedica muito tempo ao estudo. Chama-na da agência para trabalhos e ela vai. Cada vez é mais requisitada e cada vez lhe pagam melhor. Mas é-lhe indiferente. Na verdade, quase tudo lhe é indiferente.

Uma vez, na agência, disseram-lhe que devia mostrar mais empenho. Não percebeu. Não quer mostrar mais empenho, não quer arranjar mais trabalhos, já tem que lhe cheguem. E sabe que, quando a objectiva aponta na sua direcção, alguma coisa acontece porque o seu corpo ganha vida de uma forma que a transcende e os resultados são surpreendentes. Não precisa de se preparar, muito menos de se esforçar. Não quer saber e, talvez por isso, o desconhecimento de si transparece através da sua inocente e total entrega. 

Estava nestes pensamentos, enroscada no sofá, as pernas já tapadas com uma manta, quando o telefone tocou.
Meninha. 'Olhe, Beny, desculpe aquilo lá mas não gostei do avanço daquele abusado.' 
Benedita, seca: 'Não pareceu que não gostasse. Vi-a toda enlevada, fazendo pose, feita romântica'.  
Mas Meninha: 'Sabe, Beny, de início estava gostando sim, sempre sonhei de ser diva, mulher desejada, sempre sonhei que alguém ia descobrir meus méritos, minhas seduções ocultas. Seu Filipe leva tanto jeito, tira imagem mais linda das mulheres que fotografa, já estava me vendo feita primeira página. Mas depois ele veio com aquela proposta, não gostei, muito abusado, não sei se a querer tirar casquinha ou quê'.  
Benedita, quase sorrindo: 'Querer fotografar um corpo não significa que queira tirar casquinha. Um corpo é uma superfície onde a luz se reflecte, um bom campo de exposição. Mil vezes que fui fotografada e nunca nenhum fotógrafo pôs as mãos em mim. O que eles sentem ou pensam ou não quero saber'.  
Meninha: 'Disso eu não sei, não. Só sei que ver meu corpo não é qualquer um que vê. E quis lhe dizer isto porque sei que Filipe para si é especial, bem vejo como sua indiferença é mais forte com ele que com outros, bem vejo como ele se redobra no olhar para lhe pôr ainda mais linda. Não quero estragar essa coisa que vocês fingem que não é coisa.' 
Benedita, então, diz: 'Quer vir jantar comigo, Meninha? Peço um sushi. Quer?' 
Meninha diz: 'Mas depois faz tarde para voltar aqui pr'a espelunca... É perigoso. Nem Zezinho me ia querer atravessando o pedaço aí pela noite. Acho melhor não, Beny. Mas valeu. Obrigada'.  
Mas Benedita resolve o dilema: 'Pode dormir cá, Meninha'.  
Meninha hesita, há intimidades que não gosta de partilhar.  
Mas Benedita insiste: 'Vá, Meninha, venha, venha contar histórias de quando era menininha, conte-me de sua mãe, de seu pai, de seus irmãos'.  
Mas Meninha: 'Ui... isso não, Beny. Tempos tristes. Nem sabe o que isso é. Isso não. Posso contar de outras coisas mas desse tempo eu não vou contar, não.' 
Beny concorda: 'Venha na mesma.'
E logo se pôs a arrumar a sala, e logo encomendou sushi e logo procurou lençóis e mantas e logo viu se tinha chá e sumos. E foi numa ansiedade que esperou que Meninha chegasse.


Mais de uma hora depois chegou Meninha. Vinha numa produção que só vendo. Benedita teve vontade de rir mas não quis ofender. Apenas disse: 'Toda sexy, Meninha'. E ela: 'Ora, Beny, e logo você para dizer isso. Sexy não. Apenas tentando fazer bonito. Vinha em sua casa, bairro fino, vizinhança chique. É ocasião especial, não quis vir de um jeito qualquer.' 


Beny disse: 'E está muito bem, Meninha. Está chique, sim. E vá, entre logo. Venha. Se quiser, pode descalçar-se. Aí em cima desse salto tão alto, nem o sushi lhe vai saber bem. E bora, vamos jantar. Apetece-me ouvir as suas histórias. Conte-me coisas, Meninha'

Meninha sorriu e, abanando a cabeça, mostrou a sua incompreensão: 'Moça mais linda e mais doce... não se percebe porque não arranja namorado que encha suas medidas com as histórias que você quer... Olhe. Porque não dá bola para Filipe, Beny? O que ele daria pr'a estar aqui contando os troços lá dele'. 

Mas Beny não quer ser amada como acredita que Filipe sabe amar e também não sabe explicar as suas razões. 


Por isso, embrulha-se na resposta: 'Filipe e eu andamos em passo trocado. Convergimos numa vida passada e nos iremos encontrar numa outra vida. Nesta agora ele tem mais para dar do que eu posso aceitar. Mas não sei. A minha vida também anda trocada das minhas palavras. Por isso, não faça perguntas, Meninha, que não sei responder. Conte-me é de seus amores, de seus namorados, de sua vida.'

Meninha, tentando fugir ao tema: 'Não quer deixar isso pr'a lá, Beny? Minha vida é tão sem graça... Zezinho é meu primeiro namorado a sério. Antes, só mesmo coisas sem história. Lhe digo, Beny, uma vida meio sem graça '

Mas Beny sente que não, sente que, ao contrário da sua, a vida de Meninha é cheia de graça. E está doida para descobrir.

.....................................................................................................................


O episódio que acabaram de ler, o quinto, vem na sequência de:
Quarto episódio: Actos falhados, sentimentos desencontrados 
Primeiro episódio: Wild Rose

................................................................ 

[E sobre a bela luz e sobre as belas cores de Outono in heaven, queiram descer um pouco mais]

........................................................................................