quarta-feira, dezembro 11, 2013

No dia em que morreu Nadir Afonso, relembro o que, sobre ele, escrevi o ano passado. ('Nadir Afonso e outros génios - recordação dos tempos em que trabalhou com Le Corbusier e com Óscar Niemeyer'.)


Nadir Afonso - Catedrais Góticas

Música, por favor, a ver se chove
Ryuichi Sakamoto - Rain


Tenho aqui ao meu lado o livro 'Nadir Afonso conversa com Agostinho Santos', da Editora Âncora, de Janeiro deste ano.

Nadir Afonso é transmontano, nascido em 1920. É arquitecto pela Escola de Belas Artes do Porto, estudou pintura na École des Beaux-Arts de Paris. Colaborou em alguns ateliers de arquitectura, nomeadamente no de Le Corbusier e no de Óscar Niemeyer, dois grandes arquitectos.

Contudo, aos 45 anos abandonou a arquitectura e dedicou-se à pintura. Premiado, condecorado, Nadir Afonso encontra-se representado em numerosos museus em vários países.

Contudo, não é da sua pintura que aqui vos vou falar, ficará isso, talvez, para outra altura. Hoje vou referir apenas dois aspectos que ele relata e que me surpreenderam.

Temos uma ideia por vezes idealizada de algumas das grandes figuras e tendemos a ignorar o seu lado mais humano, mais pequeno.

Charles-Edouard Jeanneret-Gris mais conhecido pelo seu pseudónimo Le Corbusier

Sobre Le Corbusier (1887-1965), arquitecto, urbanista e também pintor, escuso de falar: é um dos arquitectos mais marcantes do séc.XX. O funcionalismo é talvez dos traços mais marcantes da sua obra: funcionalismo nas cidades, nos edifícios, nas próprias mobílias. Um dia, se me lembrar, também falarei dele.

Nadir Afonso recorda os tempos em que trabalhou com o grande mestre e responde assim à pergunta 'Gostou do espaço? Tinha muitos colaboradores?'

Sim, gostei, mas isso não era o mais importante. No primeiro dia, vi Le Corbusier apenas ao longe. Disseram-me: 'Olha, lá está ele, é aquele'. Mas só tive contacto com ele, dois ou três dias depois. Ele punha-se por trás do colaborador a ver o trabalho que estávamos a fazer. Fazia aquilo com a intenção de não ser logo visto. Havia um grande silêncio e ele, muito sorrateiro, lá se pôs atrás de mim a 'espiar' o que eu estava a fazer. Ou melhor, eu não o vi, eu senti na minha coluna vertebral a presença dele. Uns dias mais tarde, num desses momentos, olhei-o, sorri, e afastei-me um pouco para que ele visse melhor o trabalho que eu estava a desenvolver. Ele viu e disparou-me: 'Você está contente com o seu trabalho?'  Fiquei surpreendido com a pergunta e, sem responder, ele voltou e, dessa vez, atacou mesmo: 'Eu, na sua idade, fazia muito melhor. Você, ao pé de mim, é uma unha negra, uma unha negra' e fez questão de mostrar a sua unha. O que ele queria dizer era que eu nem sequer ser a ponta de um dedo dele.

E Nadir Afonso descreve assim o local em que Le Corbusier trabalhava: Era uma espécie de atelier dentro do atelier. Era um cubículo, sem janelas, tipo dois metros por dois metros, eram os seus aposentos, quase ninguém lá entrava.

Um dia Nadir Afonso entrou lá para lhe mostrar as suas pinturas, incitado pelos colegas, dado que Le Corbusier também pintava.

Conta Nadir Afonso: 'Lá fui, e o cenário que encontrei foi, na verdade, mais aterrador do que imaginava. Aquilo era mesmo pequeno, sem luz directa, havia apenas um foco de luz eléctrica, uma secretária de madeira'. 

Quando lhe mostrou as suas pinturas notou que Le Corbusier hesitava, olhava e dizia que estava ocupado, queria ver mas a seguir concentrava-se no trabalho. Desconcertado, Nadir Afonso 'cai na asneira' de lhe dizer que se tinha inspirado na pintura dele e aí, com isso, despertou a ira do génio. Nadir Afonso recorda 'Aí cai o Carmo e a Trindade, sabe, Agostinho, o homem parece que se atirava a mim, estava mesmo a ver que me batia... Aos berros, respondeu-me que aquilo era meu e não dele, e mais isto e mais aquilo, bem, só me lembro de ficar aterrado, de pegar nos trabalhos que estavam em cima da secretária e pôr-me a andar dali para fora.'

Óscar Niemeyer (nascido em Dezembro de 1907) em frente do 'seu' Museu de Arte Contemporânea 

Mais tarde, Nadir Afonso haveria de trabalhar no atelier de Óscar Niemeyer, arquitecto sobre quem aqui já falei, um ilustre e querido centenário cuja obra é inspirada nas curvas das montanhas e dos corpos das mulheres. Relata Nadir Afonso: 'Agora o Niemeyer era simpático, como Le Corbusier, mas tinha, por outro lado, o mesmo defeito do célebre arquietcto francês, era impossível de aturar. Do ponto de vista humano, tenho-o por boa pessoa, mas quando o 'clima' não estava em sintonia com o que pretendia, era o diabo....


E conta: 'No atelier de Niemeyer o esquema era semelhante ao de Paris. O mestre passava-me um croquis para a mão e eu tinha que os desenvolver e assim ia acontecendo. Um dia, atribuíu-me a tarefa de executar o projecto de um casino em Belo Horizonte e, como noutros casos, dá-me o esquisso. Uns tempos depois vê o projecto, diz que está bem e preparava-se para ir para o gabinete. Como eu tinha feito uma pequena alteração, decidi falar-lhe, pois não ficaria bem com a minha consciência, se silenciasse essa questão. Olhe, quando falo em alteração, Nossa Senhora, caíu das nuvens. Aos berros no meio da sala, a acusar-me que eu ia para ali 'escolhanvar'. 

E continua a relatar: 'Reagi seguindo os meus impulsos, opondo-me frontalmente àquela violência verbal. Expliquei-lhe, ou tentei explicar - porque o Niemeyer continuava aos berros - o que se tinha passado e porque tinha, na verdade, feito a pequena alteração. Mas ele estava endiabrado e não ouvia. Recordo-me de ele dizer, aos gritos, que quem mandava era ele e dizia um chorrilho de asneiras. Ao contrário de Le Corbusier, que mesmo exaltado não utilizava palavras grosseiras, o Niemeyer, no momento quente de uma discussão, não se inibia de proferir palavrões. Digo, porque é verdade, que quando se exaltava era mesmo malcriado.

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Fiquei surpreendida porquê? Nem sei. Não estou eu farta de saber que uma obra pode ser pura, límpida, perfeita, coisa quase divina e que, no entanto, o seu autor, por ser gente, terá os seus defeitos, os seus momentos maus, algumas fragilidades, será capaz de pequenas maldades, de gestos menos nobres? Não estou eu farta de saber que, nas pessoas geniais, geralmente, a sua grande obra supera a sua efémera vida, por vezes a sua pequena vida?

E, de resto, pensando bem, que importância têm uns palavrões, uns palavras arremetidas, uns quantos desaforos? 

E não contei a história toda. Em ambos os casos o relacionamento estreitou-se, de forma pouco óbvia, mas estreitou-se. 

Nadir Afonso - Gaivota

Termino com Agostinho Santos a questionar Nadir Afonso: 'Então o que é que mais admira nos homens?'.

A dinâmica quando, além das suas actividades profissionais, culturais, partidárias, associativas, recreativas e outras, ainda lhes sobra tempo para ler, escrever, manter relações públicas, cuidar de gatos, fazer jardinagem e o cultivo de rosas.

'E o Nadir, actualmente, tem outras ocupações ou é exclusivamente artista?'

Eu sou pintor e também qualquer coisa como atrasado mental: quando paro de trabalhar, só me dá para vaguear pelos campos!

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Este texto é parte do que escrevi o ano passado aqui.

3 comentários:

jrd disse...

Trabalhou com alguns dos maiores arquitectos de sempre.
Nadir o arquitecto que não gostava de arquitectura.
Acima de tudo a Pintura.

Anónimo disse...

http://www.youtube.com/watch?v=bLhUS_QjcZY

Anónimo disse...

Excelente Post! Uma bonita homenagem a um grande, nosso, artista. Gosto bastante do que Nadir pintou. Pena não ter um quadro dele!
Boa noite!
P.Rufino