segunda-feira, março 12, 2012

Nadir Afonso e os outros génios - recordação dos tempos em que trabalhou com Le Corbusier e com Óscar Niemeyer. E Theo Jansen, esculturas em movimento. E, a ver se chove, trago aqui o Ryuichi Sakamoto com Rain


Nadir Afonso - Catedrais Góticas

Música, por favor, a ver se chove
Ryuichi Sakamoto - Rain


Tenho aqui ao meu lado o livro 'Nadir Afonso conversa com Agostinho Santos', da Editora Âncora, de Janeiro deste ano.

Nadir Afonso é transmontano, nascido em 1920. É arquitecto pela Escola de Belas Artes do Porto, estudou pintura na École des Beaux-Arts de Paris. Colaborou em alguns ateliers de arquitectura, nomeadamente no de Le Corbusier e no de Óscar Niemeyer, dois grandes arquitectos.

Contudo, aos 45 anos abandonou a arquitectura e dedicou-se à pintura. Premiado, condecorado, Nadir Afonso encontra-se representado em numerosos museus em vários países.

Contudo, não é da sua pintura que aqui vos vou falar, ficará isso, talvez, para outra altura. Hoje vou referir apenas dois aspectos que ele relata e que me surpreenderam.

Temos uma ideia por vezes idealizada de algumas das grandes figuras e tendemos a ignorar o seu lado mais humano, mais pequeno.

Charles-Edouard Jeanneret-Gris mais conhecido pelo seu pseudónimo Le Corbusier

Sobre Le Corbusier (1887-1965), arquitecto, urbanista e também pintor, escuso de falar: é um dos arquitectos mais marcantes do séc.XX. O funcionalismo é talvez dos traços mais marcantes da sua obra: funcionalismo nas cidades, nos edifícios, nas próprias mobílias. Um dia, se me lembrar, também falarei dele.

Nadir Afonso recorda os tempos em que trabalhou com o grande mestre e responde assim à pergunta 'Gostou do espaço? Tinha muitos colaboradores?'

Sim, gostei, mas isso não era o mais importante. No primeiro dia, vi Le Corbusier apenas ao longe. Disseram-me: 'Olha, lá está ele, é aquele'. Mas só tive contacto com ele, dois ou três dias depois. Ele punha-se por trás do colaborador a ver o trabalho que estávamos a fazer. Fazia aquilo com a intenção de não ser logo visto. Havia um grande silêncio e ele, muito sorrateiro, lá se pôs atrás de mim a 'espiar' o que eu estava a fazer. Ou melhor, eu não o vi, eu senti na minha coluna vertebral a presença dele. Uns dias mais tarde, num desses momentos, olhei-o, sorri, e afastei-me um pouco para que ele visse melhor o trabalho que eu estava a desenvolver. Ele viu e disparou-me: 'Você está contente com o seu trabalho?'  Fiquei surpreendido com a pergunta e, sem responder, ele voltou e, dessa vez, atacou mesmo: 'Eu, na sua idade, fazia muito melhor. Você, ao pé de mim, é uma unha negra, uma unha negra' e fez questão de mostrar a sua unha. O que ele queria dizer era que eu nem sequer ser a ponta de um dedo dele.

E Nadir Afonso descreve assim o local em que Le Corbusier trabalhava: Era uma espécie de atelier dentro do atelier. Era um cubículo, sem janelas, tipo dois metros por dois metros, eram os seus aposentos, quase ninguém lá entrava.

Um dia Nadir Afonso entrou lá para lhe mostrar as suas pinturas, incitado pelos colegas, dado que Le Corbusier também pintava.

Conta Nadir Afonso: 'Lá fui, e o cenário que encontrei foi, na verdade, mais aterrador do que imaginava. Aquilo era mesmo pequeno, sem luz directa, havia apenas um foco de luz eléctrica, uma secretária de madeira'. 

Quando lhe mostrou as suas pinturas notou que Le Corbusier hesitava, olhava e dizia que estava ocupado, queria ver mas a seguir concentrava-se no trabalho. Desconcertado, Nadir Afonso 'cai na asneira' de lhe dizer que se tinha inspirado na pintura dele e aí, com isso, despertou a ira do génio. Nadir Afonso recorda 'Aí cai o Carmo e a Trindade, sabe, Agostinho, o homem parece que se atirava a mim, estava mesmo a ver que me batia... Aos berros, respondeu-me que aquilo era meu e não dele, e mais isto e mais aquilo, bem, só me lembro de ficar aterrado, de pegar nos trabalhos que estavam em cima da secretária e pôr-me a andar dali para fora.'

Óscar Niemeyer (nascido em Dezembro de 1907) em frente do 'seu' Museu de Arte Contemporânea 

Mais tarde, Nadir Afonso haveria de trabalhar no atelier de Óscar Niemeyer, arquitecto sobre quem aqui já falei, um ilustre e querido centenário cuja obra é inspirada nas curvas das montanhas e dos corpos das mulheres. Relata Nadir Afonso: 'Agora o Niemeyer era simpático, como Le Corbusier, mas tinha, por outro lado, o mesmo defeito do célebre arquietcto francês, era impossível de aturar. Do ponto de vista humano, tenho-o por boa pessoa, mas quando o 'clima' não estava em sintonia com o que pretendia, era o diabo....

E conta: 'No atelier de Niemeyer o esquema era semelhante ao de Paris. O mestre passava-me um croquis para a mão e eu tinha que os desenvolver e assim ia acontecendo. Um dia, atribuíu-me a tarefa de executar o projecto de um casino em Belo Horizonte e, como noutros casos, dá-me o esquisso. Uns tempos depois vê o projecto, diz que está bem e preparava-se para ir para o gabinete. Como eu tinha feito uma pequena alteração, decidi falar-lhe, pois não ficaria bem com a minha consciência, se silenciasse essa questão. Olhe, quando falo em alteração, Nossa Senhora, caíu das nuvens. Aos berros no meio da sala, a acusar-me que eu ia para ali 'escolhanvar'. 

E continua a relatar: 'Reagi seguindo os meus impulsos, opondo-me frontalmente àquela violência verbal. Expliquei-lhe, ou tentei explicar - porque o Niemeyer continuava aos berros - o que se tinha passado e porque tinha, na verdade, feito a pequena alteração. Mas ele estava endiabrado e não ouvia. Recordo-me de ele dizer, aos gritos, que quem mandava era ele e dizia um chorrilho de asneiras. Ao contrário de Le Corbusier, que mesmo exaltado não utilizava palavras grosseiras, o Niemeyer, no momento quente de uma discussão, não se inibia de proferir palavrões. Digo, porque é verdade, que quando se exaltava era mesmo malcriado.

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Fiquei surpreendida porquê? Nem sei. Não estou eu farta de saber que uma obra pode ser pura, límpida, perfeita, coisa quase divina e que, no entanto, o seu autor, por ser gente, terá os seus defeitos, os seus momentos maus, algumas fragilidades, será capaz de pequenas maldades, de gestos menos nobres? Não estou eu farta de saber que, nas pessoas geniais, geralmente, a sua grande obra supera a sua efémera vida, por vezes a sua pequena vida?

E, de resto, pensando bem, que importância têm uns palavrões, uns palavras arremetidas, uns quantos desaforos? 

E não contei a história toda. Em ambos os casos o relacionamento estreitou-se, de forma pouco óbvia, mas estreitou-se. 

Nadir Afonso - Gaivota

Termino com Agostinho Santos a questionar Nadir Afonso: 'Então o que é que mais admira nos homens?'.

A dinâmica quando, além das suas actividades profissionais, culturais, partidárias, associativas, recreativas e outras, ainda lhes sobra tempo para ler, escrever, manter relações públicas, cuidar de gatos, fazer jardinagem e o cultivo de rosas.

'E o Nadir, actualmente, tem outras ocupações ou é exclusivamente artista?'

Eu sou pintor e também qualquer coisa como atrasado mental: quando paro de trabalhar, só me dá para vaguear pelos campos!

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E de novo aqui no Um Jeito Manso, Theo Jansen, o escultor do movimento. Gosto tanto de o ver, gosto tanto das suas figuras surreais, poéticas. A beleza sem razões, apenas criatividade, apenas sonho. Vejam, por favor.


E tenham, meus Caros, uma boa semana a começar por esta segunda feira. Aproveitem, como uma bênção, cada precioso instante da vossa vida.

[E, já agora, caso estejam virados para a poesia e para a música, convido-vos a irem até à minha casa junto ao Tejo. Hoje, no meu Ginjal temos Tatiana Faia e uma mulher que, em parte, fica presa na noite, nas ruas estreitas. Acompanha com Debussy.]

8 comentários:

Olinda Melo disse...

Querida UJM

O seu post é um repositório de cultura. Aliás, como todos os outros. :)

Este Sakamoto, assim de perfil, não parece nada japonês. Meu Deus, que músico! Começa como quem não quer a coisa, depois prossegue num crescendo imparável que até tira o fôlego...

Quanto ao Nadir Afonso, tem um nome que não me parece português, de Chaves.Parece-me mais brasileiro e nome de mulher...

Não me admira nada que ele tenha abandonado a arquitectura, com mestres destes,famosos mas muito mal humorados. Mas é como diz, o génio poderá muitas vezes desculpar estas fraquezas...
Gostei muito da pintura de Nadir e das imagens do 'escultor do movimento', Theo Jansen.

Saio daqui revigorada. Obrigada.

Votos de uma boa semana.

Beijos

Olinda

Um Jeito Manso disse...

Olá Olinda!

O Sakamoto é um músico especial e, curiosamente, muito mediático. Tem interpretações fantásticas.

O Nadir Afonso é uma pessoa que conserva uma certa pureza. Nestas que aqui escolhi como em várias outras das suas pinturas nota-se o traço do arquitecto.

Eu imaginava que o Neimeyer seria um charmoso, um bon vivant, sempre boa onda. Não o imaginava furibundo. Mas se calhar era isso tudo, charmoso, bon vivant, boa onda e temperamental. Quem sabe se é também por ser assim que teve ideias tão arrojadas e elegantes?

Quanto ao Theo Jansen: maravilha-me. O que ele faz, a forma como imagina, como acompanha, a forma como fala daqueles seres alados.

Enfim... também me sabe bem escrever sobre estas coisas.

Um beijinho, Olinda. Obrigada.

Isabel disse...

Gostei muito de todo o post, especialmente do video.
Uma escultura muito interessante.
Uma boa semana

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel das Palavras daqui e dali,

Muito obrigada pelas suas palavras.

A escultura é fascinante. Gostaria de poder vê-la ao vivo, andando na praia; gostaria também de poder ouvir ao vivo o Theo Jansen, deve ser uma pessoa interessantíssima. Mas, enfim, como não dá para ser ao vivo, é assim, através do youtube, dá para termos uma ideia.

Uma boa semana também para si Isabel.

Anónimo disse...

Cara Ujm:

Fabuloso, depois de um dia de trabalho intenso.
Sem dúvida que a arte alivia a dor e pode ser mesmo curativa.

Não conhecia Theo Jansen e as suas esculturas fiquei interessadíssima em conhecer melhor.

Leanor pela verdura

Um Jeito Manso disse...

Leanor que vem pela fresca da noite,

Depois de ter cumprido com a minha empreitada diurna (ou melhor, nocturna) eis que ainda encontro aqui um bilhetinho seu.

Afinal, não estou sozinha nesta sala em frente de um computador sem vida.

Neste écran aparacem-me as vozes dos meus amigos que aí, do outro lado, estão a ouvir as minhas palavras.

Vou-me agora deitar (quase às 2 da manhã...).

Um abraço e obrigada, Leanor!

Anónimo disse...

Gostei muito do post.
Nadir é um nome de origem persa e comum em toda a região em torno dos mares Cáspio até à India e trata-se de um nome masculino. O feminino é Nadira. No Brasil erradamente é usado no feminino.

Um Jeito Manso disse...

Caro Anónimo,

Muito obrigada pelas suas palavras e pelo seu esclarecimento. Não sabia. Nadir é um nome muito bonito e Nadira também.

Volte sempre!