quarta-feira, novembro 08, 2017

Noite de juízo





E, então, quando estavam a começar a jantar, tocou o telemóvel. Benedita atendeu. Mal se ouvia do outro lado. O coração de Benedita disparou. 'Mãe....! O que foi...? Fala!'. Silêncio. Depois uns gemidos. 'Mãe! O que foi? Fala!'. Depois conseguiu perceber. A mãe dizia: 'Caí... Não consigo levantar-me...'. Benedita calçou-se, pegou na carteira e na chave do carro e disse: 'A minha mãe. Não sei se é grave. Depois ligo. Fica à vontade, janta, não esperes por mim.' Meninha ainda quis acompanhá-la mas não deu tempo.


Foi numa correria. Quando lá chegou, a casa às escuras. Foi acendendo luzes enquanto chamava pela mãe. Nada. 'Mãe!' Nada. Foi de encontro a um móvel, magoou-se, uma dor no ombro mas nem deu por isso. O coração disparado, uma aflição. 'Mãe!'. Até que, junto à cama, a viu caída. O coração quase parou de medo. 'Mãe!' Nada. O corpo numa posição estranha, torcida. Gelada de medo, Meninha encostou a mão à boca da mãe. Sentiu que respirava. Abanou-a. Bateu-lhe na cara. Nada. Quando, a tremer, tentava marcar o 112, ouviu a mãe a dizer: 'Caí...' De olhos abertos mas desfocados, olhando à toa, Iolanda gemia. Benedita tentou levantá-la. Não conseguiu. A mãe estava transformada num corpo morto. Tremendo, conseguiu a ligação. Passado um bocado chegou o INEM. Observaram a mãe, fizeram perguntas à filha. Depois pegaram nela, puseram-na cama. Tinha-se urinado. Estava molhada, o chão molhado. Benedita ficou envergonhada pela mãe. No fim disseram que ela estava estável, não lhe encontravam nada. Estava sedada, provavelmente tinha abusado na dose. Dormindo, passava-lhe. Devia ter querido ir à casa de banho e, meio a dormir, ter-se-ia desequilibrado. Mas estava em cima do tapete, nem devia ter dado um único passo. Respirava tranquilamente. Os técnicos do INEM sorriram: 'A senhora sua mãe vai dormir o sono dos justos'

Quando saíram, Benedita desatou a chorar. Mais um susto. Quantos já? Quantos mais? Estava cansada. Odiou a mãe por tudo o que a fazia passar. Não era justo. Instantes depois, já mais calma, pensou lá ficar, velar pela mãe, coitada da mãe, tão sozinha, tão triste. Mas depois pensou que a mãe nem dava por ela, estar ou não estar era a mesma coisa. Saiu. Mas antes aconchegou-lhe a roupa da cama, beijou-a na testa.

Mal tinha entrado no carro, o telemóvel. Filipe. Hesitou. Estava sem forças, desfeita. Não tinha disposição para conversas. Mas atendeu. Filipe percebeu pela voz. 'Então? O que é isso? Estás a chorar?'. Benedita voltou a chorar, uma pena crescente de si própria. Não conseguiu falar. Filipe perguntou: 'Onde estás?' Benedita, a custo, disse que ia para casa. Filipe disse: 'Vou lá ter. Conduz com cuidado, vai devagar'

Quando Benedita estava a entrar em casa, estava a campainha lá de baixo a tocar.

Meninha surpreendida: 'Oi! Que animação, esta. Está esperando alguém, Beny?'. Mas Benedita não respondeu. Meninha, já aflita: 'Que foi Beny? Que cara é essa, menina? Que foi que aconteceu? Tá chorando?'. Benedita sentou-se, encolhida, o rosto tapado. Chorava, sim. 'O mesmo de sempre. Mas assusto-me. Tenho medo que um dia nem consiga ligar-me. Não consigo assistir à auto-destruição da minha mãe... não consigo...'.

Chegou, então, Filipe. 'O que é que aconteceu?'. Meninha encolheu os ombros e falou baixinho: 'Qualquer coisa com a mãe. Mas não deve ter sido nada de grave porque Beny foi lá e voltou'.


Filipe sentou-se ao lado de Beny, um braço sobre os seus ombros. Do outro lado, Meninha, fazendo-lhe festas no rosto e nas mãos. Filipe, apreensivo e solidário, aconchegava Beny e, sem saber o que se passava, dizia: 'Então? Toda a gente tem problemas, acontece, não há famílias perfeitas. Ou ela está doente...? Ou houve briga...?'. Benedita apenas chorava. E Meninha dizia: 'Lembra que é uma wild rose. Não chora, não, Beny. Logo, logo tudo fica bom...'

E ali ficaram um bocado.

Depois Meninha disse: 'Seu sushi está esperando por você, Beny. E dá para Filipe.' Depois de uma pausa, completou: 'Fiz uma coisa. Tenho que me desculpar. Não queria lhe dizer. Não quis fazer feio, criar desfeita. Mas não gosto de peixe cru, não. Estava me enchendo de coragem e, por dentro, toda numa ânsia. Ia fechar o nariz por dentro e tragar a coisa. Mas como você não estava, aliviei minha vergonha e deixei de lado. Olha, abusei de sua confiança, Beny, fui no frigo. Tirei um ovo. Melhor: dois. Mexi dois ovos. Me desculpa, Beny'. Benedita sorriu: 'Podia ter dito, que eu tinha pedido chinês, Meninha...'

E então foram os três para a mesa que ainda estava posta. Mas logo Filipe se levantou e perguntou se podia escolher uma música. Beny encolheu os ombros e com o queixo apontou na direcção dos CD's. Filipe escolheu. Nina Simone. Mr. Bojangles. Depois, quando ia sentar-se, disse com aquele seu sorriso feito pedaço de mau bocado: 'E depois da janta, alguma das meninas vai dar-me a honra da uma dança...?' e piscou o olho a Benedita. Mas Beny estava jururu. Disse: 'Estou preocupada. Não sei se não devia ir dormir a casa da minha mãe'. Depois, uma lágrima querendo escorrer no rosto: 'Dança com a Meninha'

E, dizendo isto, espreitou a surpresa dele e, de imediato, o seu olhar incendiou o coração de Filipe. Beny, mesmo estando assim, triste e derrotada, sentia que a wild rose vibrava dentro de si. Mesmo não o sabendo, queria festa, ela. E em segredo, indecente, pensou: a ver se Filipe está à altura.

Depois, o olhar ainda pior, pecaminoso de tão inocente, desafiou: 'Ou dança para mim; Filipe'. Filipe fez um esforço para não se afundar, logo ali, no tentador abismo do olhar de Beny. Mas se susteve. Ainda era cedo.


He looked to me to be the eyes of age
As he spoke right out
He talked of life

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O episódio que acabaram de ler, o sexto, vem na sequência de:
Quinto episódio: A solidão das mulheres bonitas
Quarto episódio: Actos falhados, sentimentos desencontrados 
Terceiro episódio: Uma wild rose com red carnations nos seios 
Segundo episódio: Beny e Meninha numa tarde especialmente quente
Primeiro episódio: Wild Rose
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