domingo, agosto 27, 2017

Lições de vida
[Se é que, sobre a vida, é possível extrair 'lições']





Do que está ao lado do meu pai diz a minha mãe que parece um miúdo. Não me parece. Talvez seja pessoa para ter a mesma idade que eu. (Talvez, então, por isso. Por vezes, a  minha mãe fala comigo como se eu fosse ainda uma miúda). Magro, muito branco, cabelo grisalho. Não tem rugas. Está num cadeirão e tem uns tubos pendurados. Está quase sempre de olhos fechados. No outro dia, estava lá um rapaz muito alto. Ouvi-o dizer: 'Então, pai?' mas ele não disse nada, nem sei se abriu os olhos. A mulher ciranda por lá, sai para ir ao café, olha em volta, faz por entabular conversa connosco. Percebe-se: o marido não diz nada, ela tem que se entreter de alguma forma. A minha mãe contou-me que no outro dia lhe perguntou se tinha sido um AVC e que ela disse que não, que é demência. Nem sempre tem visitas e também se percebe, são de uma vila a uns quilómetros. Nem sempre se tem disponibilidade para visitas destas. De resto, para ele as visitas parecem ser completamente indiferentes.

Mas no outro dia aconteceu uma coisa. Dos quatro, o meu pai era o único com visitas. Os outros três dormiam. Tal como o meu pai, mais dois estavam num cadeirão. Só o meu pai protestava: que a televisão estava muito alto, que queria que se desse um jeito no lençol que o prendia, que queria que se despachassem, que 'isto está mau'. Percebe-se mal o que diz mas o tom é de arrelia. Não está bem quando está sentado. O quarto doente estava deitado e tento não olhar muito para ele porque me faz impressão. A minha mãe diz: 'Parece um aranhiço'. A mim não, parece-me um esqueleto. Descarnado, o rosto é uma caveira, o corpo um esqueleto. Tem sempre os olhos fechados e a boca completamente aberta. Parece ter saído do mundo dos vivos. Mas mexe-se de vez em quando.

Como sempre, eu e a minha mãe vamos conversando. Temos avental, luvas e a médica e os enfermeiros dizem que não precisamos de máscara. E conversamos. Então, reparo que o senhor da cama ao lado está de olhos abertos, olhando-nos. O olhar parece vazio, todo ele inexpressivo. Mas não tira os olhos de nós.

Quando chegam as assistentes para tratarem da higiene deles e nos mandam sair, nós aproveitamos para dar a visita por concluída. Despedimo-nos do meu pai e despedimo-nos delas que estão a começar a ocupar-se do vizinho demente: 'Boa tarde'. E, então, com perfeita dicção e a voz bem colocada, o senhor despede-se também: 'Boa tarde'. Elas quase dão um salto. Surpreendidas. E nós também. Dizem-lhe: 'Esta agora foi boa, ó Sr. Luís. Boa tarde. Sim, senhor. Muito bem. Olha quem havia de dizer...?'

Mas, com ou sem manifestações destas ou de outro tipo, não tenho dúvidas: aqui é o fim da linha. Nenhum dos quatro doentes desta sala vai alguma vez voltar a ser um homem independente, saudável. Quando ali estamos a minha mãe volta e meia emociona-se, as lágrimas nos olhos: 'Se ele se visse assim. Tão orgulhoso que era, sempre tão capaz de tudo, e agora assim'. Penso o mesmo mas não o digo. Na recta final, a vida tem estado a ser ingrata para o meu pai. Até há nove anos ele achava que era saudável, que, pela vida saudável que levava, haveria de viver até tarde, sempre escorreito, independente. Nunca tinha tido qualquer doença, fazia uma alimentação cuidada, fazia exercício,  sempre ocupado, parecia bem mais novo.

Vendo em retrospectiva a vida dele e da minha mãe, o que reconheço é que, enquanto a minha mãe sempre viveu num registo de boa onda, o meu pai sempre foi stressado. Se tinha que sair de casa às dez, às nove e tal já ele queria estar despachado, já ele andava a pressionar a minha mãe para se despachar. Se ele ia passar uns dias à outra casa, com antecedência já ele queria ter tudo planeado ao pormenor, já ele queria começar a ter tudo pronto. Mesmo quando eu era miúda, ele era o primeiro pai a ir-me buscar às festas de anos e, se eu lhe pedia que me deixasse ficar mais um bocado, condescendia em não mais de um quarto de hora porque não tinha paciência para ficar à espera. Tendo todas as condições para ter uma vida boa e sem preocupações, eu via-o sempre em estado de alerta nem se sabe bem para quê. E irritava-se com a minha mãe porque a via sem pressa, sem stress. Se eu lá estava em casa de visita, sempre na conversa e na risota com a aminha mãe, a partir de certa altura já ele dava mostras de impaciência, achando que o meu marido já devia estar farto de estar à minha espera. Tantas vezes que eu lhe dizia que não tinha que se preocupar com o meu marido, que isso não era problema com que tivesse que se preocupar. Mudava, então, de registo e a preocupação passava a ser com não gostar que eu conduzisse de noite. Na verdade, a questão é que tudo era motivo para stressar. E como eu e a minha mãe, mais que vacinadas e com outra maneira de ser, não ligávamos, ainda mais se stressava. A minha mãe conta que, no supermercado, ele ficava a meter as coisas nos sacos, com grande eficiência e, quando chegava a vez de pagar, se ela não estava com o cartão logo a postos, já ele lhe deitava olhares reprovadores porque achava que iriam fazer esperar as pessoas que se seguiam. Nem que a espera fosse de apenas dois segundos. Pormenores assim que bastavam para ele ficar irritado. 

O meu pai já não está em condição de fazer um balanço da sua vida. Nós é que fazemos por ele. Achamos que poderia ter sido mais feliz se tivesse sido capaz de encarar  a vida de forma mais serena. Não sabemos se esse seu stress que frequentemente implicava também insónias teve responsabilidade no AVC mas admitimos que sim.

A minha mãe, que parece mais nova, jovial, alegre, a quem os miúdos adoram, lá vai aguentando o peso que é esta situação e encarando a vida com o realismo de sempre, não se indo abaixo. Pode, em momentos mais críticos, ficar frágil. Nessas alturas, emociona-se, tem pena; mas encara as coisas como elas são. Dizemos ambas muitas vezes: 'não se escolhe'. E saímos do hospital e vimos na conversa. Pode ela, a propósito de qualquer coisa, lembrar-se de ditos dos alunos ou parvoíces ditas por pais de alunos, e rimo-nos, ou fala das vizinhas com quem vai à ginástica ou de uma, bem mais nova, que tem uma mãe completamente passada e que ficciona que tem inúmeros namorados, relatando casamentos na praia, falando de uma casa que tem com jardins e pomares -- e, neste caso, fala com tal realismo que a filha chega a duvidar se a mãe terá mesmo uma casa de que nunca lhe falou. E, relatando-me estas peripécias, eu e a minha mãe rimo-nos. Não é troça. É mesmo esta capacidade que temos de reconhecer o sentido de humor que há nas mais diversas situações.

Rir é bom. Ver o lado divertido das coisas é bom. Sentir o suporte daqueles de quem gostamos também é importante. Ter boas recordações e gostar de trazê-las ao pensamento presente também é bom.

E eu saio destas visitas que têm tudo para serem pesadas -- e nestes últimos tempos são dois os familiares hospitalizados (um saíu, entretanto) -- e ingresso na vertente feliz e buliçosa da minha vida.

Falamos dos doentes e preocupamo-no -- e há dias as coisas estiveram mesmo críticas e todos acorremos preparando-nos para o pior -- mas a vida continua. E, acto contínuo, estou com as crianças à minha volta, a fazer comida para um batalhão, todos a rirem e a conversarem. O quarto pimentinha, um artista, cinco anos recém feitos, agora imita o bisavô a chamar pela avó. Tal e qual. E todos pasmamos com a facilidade que tem para apanhar o tom de tudo. E rimo-nos com ele.

Nem todas as pessoas serão iguais nem sou capaz de dizer o que é mais ou menos louvável porque acho que não há louvores a dar em tais situações. As pessoas são como são, umas mais dadas a alimentar climas de tragédia, outras a passar pela vida com alguma ligeireza. Não há melhores nem piores nem ninguém espera uma medalha pelo que quer que seja quando passa por estas situações. Somos diferentes uns dos outros e nessas diferença se integra o maior ou menor grau de felicidade com que atravessamos a vida.

Pela parte que me toca, aquilo em que sempre penso é que a vida é um dom precioso que temos que acarinhar e festejar. Do início ao fim.

Já aqui contei: no casamento da minha filha, que, por gosto do marido, foi na igreja, no fim, houve comunhão e eu, para meu espanto, vi a minha mãe a avançar para se pôr na fila. Perguntei-lhe: 'Vai comungar...? Mas confessou-se?!' Ela riu-se: 'Não preciso. Não tenho pecados'. E lá foi.

Não sou de comungar mas penso o mesmo. Não tenho pecados. E essa sensação traz-me leveza. E a leveza torna-nos a vida pouco pesada (La Palice não diria melhor). E uma vida pouco pesada é uma vida boa de ser vivida, por muito longa que seja. E isso é, afinal, o que importa.


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Vem isto a propósito de mais um vídeo que o YouTube seleccionou para mim. Talvez por ter andado a fazer pesquisas relacionadas com questões que se prendem com a condição do meu pai, o algoritmo deve ter detectado que lido com temas como aqueles de que vos falei e propôs-me o interessante vídeo que aqui partilho convosco. Comovente e muito interessante. Gostava que lhe dedicasem alguma atenção.

Lições de Vida de pessoas com mais de 100 anos


We asked three centenarians what their most valuable life lessons were, and also their regrets.



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As imagens que usei ao longo do texto são fotografias de Steve McCurry e mostram pessoas que, independentemente da dura vida que têm, conseguem encontrar alegria em viver.


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No outro dia, falando da situação acima mencionada e referindo algumas das circunstâncias em que o meu pai se encontra, a pessoa com quem eu falava, começou a ficar com os olhos cheios de lágrimas. Eu que falava, segundo me ouvi, num tom factual, como que desprendido, disse-lhe: 'Está a fazer-lhe impressão. Desculpe. Não digo mais nada'. Ela limpou os olhos e disse: 'Não, continue, gosto de ouvir'. Pensei, então, que ela deveria estar a pensar no seu próprio pai que morreu de repente, há alguns anos, não tendo passado pela agonia de ir decaindo aos poucos. Mas 'não se escolhe'.

De qualquer forma, meus Caros Leitores, caso o que escrevi vos incomode e se sintam precisados de alguma fantasia, então aceitem o convite e desçam até ao post seguinte. Aí tudo é o oposto. Uma alegria.

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