domingo, junho 25, 2017

Num excesso sempre
incontido
de perda e perdição





Estava calor. Apesar das janelas estarem abertas para o ar circular, Lu sentia-se transpirada. Foi tomar um duche. Estava a sair da casa de banho, nua, o cabelo molhado, quando ouviu tocar à campainha e, em simultâneo, bater à porta. Ouviu chamar por ela. Passado um bocado, a chave a rodar na porta. 

De novo ele, outra vez zangado: 'Só podes estar mal da cabeça. Aqui fechada, sem atenderes o telefone, sem responderes a mails, sem abrires a porta. E desististe de ir trabalhar? Não te parece que já chega desta palhaçada? Se não queres voltar a trabalhar, demite-te. Se estás passada, vai ao médico, mete baixa. Isso é um burnout. Trata-se. Agora ficares em casa fechada é que não resove nada. Merda. E nem pensas que me preocupas?'

Lui, serena, nua, de frente para ele: 'Não, não penso que te preocupo. E sabes há quanto tempo não gozo senão umas duas semanas de férias por ano? Faz as contas. Se tudo o que dei à empresa não serve de nada, nem sequer para, por uma vez na vida, poder descansar, então deixa que me farei pagar de outra forma'.

Ele sorriu ao de leve: 'Já estás melhor...'

Lu não ligou à piada. Limitou-se a esclarecer: 'Estou a escrever as minhas memórias, preciso de tempo. E cada vez me sinto mais descansada, mais leve e cada vez me lembro de mais coisas'

Foi como se tivesse sido alvejado. Olhou-a com ar aterrado. Depois deixou-se cair numa cadeira, ombros tombados: 'Merda, Lu. que conversa é essa? Se os gajos cá voltam... Tu estás a arranjar lenha para te queimares. Para nos queimarmos. Merda. Não faças isso. Deita tudo fora'.

Ela saiu da sala sem dizer nada. Pouco depois regressou com um vestido que lhe cobria levemente a nudez. Sentou-se em frente dele: 'Se soubesses como me faz bem relembrar alguns episódios da minha vida. Gosto de escrever. Parece que escrever abre os diques da memória. Não vou deitar nada fora. Quando acabar mostro-te. Afinal és um dos personagens. Acho que vais ver que estou a retratar-te com lisura. Não podia ser de outra forma. Sou fair em qualquer circunstância. Acho que, no fim, até posso ver se a editora da fundação está interessada em publicá-las. 'As memórias de L. O que achas? Será um título suficientemente sugestivo?'.

E, dizendo isto, reclinou-se um pouco no sofá e colocou um pé sobre ele, deixando ver que estava sem roupa interior.

Ele olhou mas não reagiu. Noutra altura teria saltado sobre ela, guloso e impaciente. Limitou-se a dizer 'Ainda vais dar cabo de nós. Para que é isso?'. Ela olhou-o com olhar vazio, indiferente à ansiedade dele, que insistia: 'Responde. Estás a ouvir? Qual a ideia? Posso saber?'

Lu, como se estivesse a fazer um esforço, condescendeu em responder: 'Não tem nada a ver com 'nós'. Existe algum 'nós'? Que eu saiba, não. E tal como não preciso da tua protecção para coisa nenhuma, também acho que deverias ser menos medroso até porque ficas patético assim, a mostrar que tens medo de mim. Ridículo...'


Ele levantou-se, irritado, 'Estás a ser parva. Não tenho medo. Mas acho absurdo que estejas a entregar o ouro ao bandido'.

'Quem está a ser parvo és tu, ó empresariozinho caguinchas. Quem é que te diz que não estou simplesmente a contar uma maravilhosa história de amor?', e ela esboçou um sorriso.

Mas ele não achou graça 'Deixa-te de merdas, Lu. Sou casado, não me trames'

Ela ajeitou o cabelo que, entretanto, secava, rebelde: 'E olha lá, ó cagãozinho, e quem é que te disse que tens lugar na história dos amores da minha vida? Só lá apareces nos momentos de comédia e é na qualidade de emplastro. Ou nos momentos de suspense. O grande empresário, tão incensado, tão galardoado mas, de facto, um parvalhão, um vendido, um corrupto, um assassino.'

Ele olhou-a perplexo. 'Piraste...? Trata-te. Estás maluca. Assassino? Tem cuidado com o que dizes, Lu, tem cuidado, estou a avisar-te. Ouviste?'

'Digo, sim: assassino. Quantas pessoas já morreram por tua causa? O que se suicidou, esqueceste? A dos Jurídicos a quem empurraste para uma aventura suicidária. Lembras-te? E o que morreu em casa da mãe, depois de lhe terem amputado as pernas?... Queres mais...?'

'Não estou a gostar desta conversa. Estás passada. Esse era diabético. Que é que eu tenho a ver com isso? Está calada que não estás a dizer coisa com coisa. Cala-te.'

'Não limpes a tua consciência, presidentezinho. Eu lembro-te. Ele não queria aparar os teus esquemas. Era um homem íntegro. O que fizeste para o afastar... lembras-te? Humilhaste-o, perseguiste-o. Não descansaste enquanto o homem não saíu da companhia. A companhia como tu dizes, enchendo a boca. A empresa cujas contas ele queria manter transparentes e de que tanto se orgulhava.  Saíu pela porta baixa, descartado como um inútil. Não saía de casa. Arranjou uma depressão. A mulher não aguentou. Deixou-o. Ele foi viver para um andar pequeno. Continuou fechado em casa, não queria ver ninguém. Não se mexia, não se tratava. Sim, diabético. Foram as filhas que levaram o médico lá a casa. Tarde de mais. Tiveram que lhe cortar as pernas. Quando saíu do hospital, foi para casa da mãe, uma idosa desfeita por ver o filho, antes um executivo bem sucedido, agora um inútil farrapo. Obeso, inválido. Morreu pouco depois, paragem cardíaca. Toda a gente falava disso. Fazias de conta que não tinhas nada a ver com o assunto. Lembras-te da carta que as filhas escreveram para a empresa? E tu que fizeste?'

Lu parecia calma mas ele estava cada vez mais assustado. 'Esquece. Não vale a pena, estás maluca e eu não estou para ouvir estes disparates. Estás paranóica, como se tudo tivesse a ver com tudo e como se eu fosse a mão que tudo destrói. Esqueces-te da obra social, esqueces-te de todos a quem ajudamos a ter uma vida melhor?'.

Lu reagiu: 'Uma merda. Fazes o que fazes -- e tu, tu mesmo, de facto não fazes a ponta de um corno -- apenas para termos benefícios fiscais, para ficares bem nessas gaitas da responsabilidade social, para receberes prémios chorudos que colocas sabemos bem onde. Guarda as aldrabices para quando dás entrevistas ou para quando tiveres que te defender. Comigo não. Mais do que tua confidente ou amante, sempre fui tua cúmplice. Sei de tudo. Contigo sempre partilhei a responsabilidade, a insensibilidade, a arrogância, a frieza. Não te esqueças disso.'

'É verdade. Portanto, pensa bem. Se me tramares, tramas-te também a ti. E porque haverias de o fazer? Fiz-te algum mal? O que é que aconteceu?'

'Nada. Não aconteceu nada. Simplesmente um dia acordei com formigueiro nos dedos, sem quase saber de mim. Na verdade, percebo agora, foi como se tudo o que andava a viver me estivesse a sugar a existência'.

'Merda, Lu. Apaga o que escreveste. Volta para o trabalho. Preciso de ti. O ambiente está muito mau. Depois das buscas, aquela merda está de cortar à faca. E já falaste com o Manel? Aqueles gajos não brincam em serviço. Tu vê com o Manel.'

'Não vejo nada. Estou sob escuta e tu também. Quando aqui andaram a revistar a casa até podem cá ter deixado microfones. Não sei nem quero saber. Mas é uma questão de tempo'

'Porra, Lu. Sabes lá tu se estamos sob escuta... Sabes lá se arranjam alguma ponta por onde pegar. O que não faz sentido é facilitar. Apaga tudo, apaga as merdas que andas a escrever, anda trabalhar, vamos voltar ao que era'.

Aproximou-se, estendeu os braços, baixou-se na direcção dela. Ela endireitou-se. Depois levantou-se e olhando-o nos olhos disse com indiferença 'Ao que era...? Impossível. Sob todos os pontos de vista. Todos. Apesar de muitos me desejarem, por comodismo servia-me de quem me estava mais à mão. De ti. Eras um objecto fácil. Agora acho que está na altura de não me contentar com amostras, com deturpações. Está na altura de arranjar um homem de verdade'

Irritado, ele dirigiu-se para a porta. Então, viu o computador sobre uma mesinha pequena e, com inusitada violência, deu-lhe um pontapé, atirando tudo ao chão, a mesa, o computador, o copo de sumo. E saíu, atirando violentamente com a porta.

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O título deste post é parte do poema 'Perdição' de Maria Teresa Horta in 'Poesis'

Lorraine Hunt e a Philharmonia Baroque Orchestra interpretam "With Darkness, Deep," da ópera "Theodora" de G. F. Handel 

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