quarta-feira, outubro 26, 2016

Relatividade -- aula prática





A mesa era redonda. Não conhecia ninguém. Melhor, apenas um sem me lembrar de onde. Soube-o depois: conhecimento superficial e antigo. A conversa foi-se desenrolando, solta, várias pontas. À minha direita, uma realidade muito díspar da que conheço. Falam de militares, de segurança, da escola israelita. À esquerda palavras que conheço mas que jamais pronuncio. Jargão. Muita assertividade, muito conhecimento, nenhumas dúvidas. Falam de experiências noutros países, viajados, internacionais. À minha frente um homem mais velho, ar um pouco cansado. Tal como eu, apenas ouve. De vez em quando, alguns assuntos, à direita, despertam a minha curiosidade. Ouço mais atentamente a ver se percebo e, de vez em quando, faço uma pergunta. Temo que a pergunta seja descabida mas respondem-me com delicadeza. Às tantas, o senhor da frente começa a falar. Diz coisas interessantes. Tem cansaço na voz e na expressão, como se já tivesse visto tudo o que há para ver. A conversa à esquerda vai animada, parece que descobriram a verdade, sabem tudo. Não me desperta qualquer curiosidade. O senhor olha para eles e não diz nada, acho que tem pena deles. Também mais ou menos à minha frente está um outro, silencioso. De vez em quando, parece querer enturmar-se, diz qualquer coisa. Mas ninguém parece interessar-se e ele volta a ficar silencioso.


A sala muito bonita. Pé direito muito alto, as paredes cobertas de espelhos emoldurados por talha dourada, castiçais, reflexos, luzes. Do tecto descem grandes candelabros. Na verdade, lustres imponentes. Entre os espelhos, grandes pinturas, óleos clássicos. A meio da mesa uma jarra de vidro muito alta, daquelas a que se chama solitário e, nela, um pé de flor também alto, e a flor quase escandalosa de tão exuberante num ambiente tão clássico.

A comida muito boa, o vinho bom. 

Pensava no que tinha escrito poucas horas antes. As lágrimas do refugiado, o abraço de dois outros, a triste sina dos que nada têm. E no que tinha lido depois: as crianças que ficam num contentor na fronteira e que seguirão para o reino unido onde lhes traçarão o destino. Meninos e meninas sem pais, sem um beijo à noite quando adormecem. Um mundo silencioso, insalubre, que eu e os meus companheiros de mesa ignoramos. Aqui, a esta mesa, somos evoluídos, uma elite informada.

Quando nos sentámos, tínhamos na mesa, à nossa frente, um prato grande e um pequeno por cima e, dos lados, vários talheres do mais fino material. Em frente três copos elegantes. Depois, foram trazendo mais pratos, vários, confecção sofisticada, empratamento esmerado. Nenhum dos comensais disse que a comida era boa. A mim apetecia-me introduzir esse tema, comentar 'que bem que sabe isto, quem haveria de dizer que estes ingredientes combinavam tão bem...'. Mas não disse. Parecia que todos estavam tão habituados a comida tão requintada que nem lhes ocorria saboreá-la e, ainda menos, prestar-lhe atenção. Também me apetecia dizer que o tecido do guardanapo era macio, bonito, que quase me apetecia bordá-lo. Também não o disse.


A conversa foi fluindo. Agora à direita a conversa já ia noutro sentido. Investimento público, investimento privado. Países onde se fazem grandes investimentos públicos, biliões, países em forte crescimento. Apetece-me fazer perguntas, saber melhor de que falam. O tema interessa-me mas apenas o afloro ao de leve. Não estou para grandes conversas, apetece-me guardar distância, ouvir apenas. Mas penso que, apesar de não estar particularmente conversadora, talvez este seja mesmo o meu lugar, bem longe da escrita vagabunda pela noite fora. À esquerda, a conversa vai em crescendo: projectos, uma animação, muita auto-afirmação. Tenho vontade de dizer que não é nada daquilo, que é tudo ao contrário, tudo, tudo, que deviam ficar calados durante trinta dias, a ouvir música, a ler, a olhar o mar. Mas não digo nada, não quero interromper aquela alegria. O senhor da frente agora começa a contar alguns episódios recentes passados consigo. O outro, antes silencioso, começa a despertar. Tem uma voz grave que contrasta com a candura do olhar. Conhece o mundo, traça paralelos, aponta contrastes. Penso que poderia ser professor tal a forma como coloca a voz e como usa um tom pedagógico. Acho que julga que estou a prestar atenção. Não estou. O que ele diz não me interessa.

Quando trouxeram a sobremesa estava eu a pensar que era bom que algum começasse a dizer um poema ou que, ao menos, não parecessem homens de negócios, gestores, executivos.

Depois veio o café. Já todos falavam com todos e talvez eu também estivesse a participar. Lembro-me agora que me fizeram várias perguntas, que me ouviram com atenção. Mas, agora que aqui escrevo, sei que foi uma outra. Sou muitas e talvez sempre convincente.


Depois levantámo-nos, despedimo-nos. Quando estava a sair, encontrei um conhecido com quem tinha tido uma reunião poucos dias antes. Não me apeteceu ficar mais tempo ali naquele ambiente tão requintado e, para atalhar conversa, cumprimentei-o ao mesmo tempo que me despedi. Como se estivesse cheia de pressa, fiz sinal que falávamos por telefone. E estava mesmo cheia de pressa. Ao princípio da noite, telefonou-me. Podíamos ter-nos desentendido mas encontrámos um caminho comum. Quando acabou a chamada, pude, então, finalmente, ouvir música, em paz. Estava a precisar.

E agora estou a chegar ao fim de mais uma jornada e ainda não ouvi um poema.

Não sei dizer se o meu dia valeu a pena.


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As imagens são algumas das melhores fotografias da competição da Nikon Small World Photomicrography 2016.

Da primeira dizem ser: Caudal Gill Of A Dragonfly Larva
Da segunda: Wildflower Stamens
Da terceira, a flor etérea: Retinal Ganglion Cells In The Whole-Mounted Mouse Retina
Da quarta: Leaves Of Selaginella
Da última: Front Foot (Tarsus) Of A Male Diving Beetle

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um dia feliz.

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3 comentários:

bea disse...

Bonitas imagens, sem dúvida. Obrigada. Sendo assim convincente, que tal pensar no marketing, venda de produtos:). A crer nas suas palavras, venderia de tudo. E sim, sendo tanta gente numa só, o seu lugar é por aí. Ou não teria sido convidada nem aceite o convite. Escrever coisas pela noite fora não tem estatuto, é só uma insónia corriqueira. E querendo, pode ocupá-la de outro modo.

Um Jeito Manso disse...

Olá bea,

As fotografias são extraordinárias pois mostram a beleza daquilo que, a olho nu, mal se vê.

Já fui responsável pelas vendas em contexto internacional. E também pelas compras. E prefiro comprar a vender. Sou mais de me fazer rogada do que de impingir.

E não, bea, não tenho insónias. Durmo como uma pedra. Sou é noctívaga. Desde que me conheço que gosto de me deitar tarde. E como tenho dias muito cansativos, preciso mesmo de ter um bocadinho para me abstrair e distrair e descansar antes de ir dormir. Pode ser a ler, a pintar, a bordar ou a escrever. Agora e desde há uns quantos anos é a escrever. Gosto.

bea disse...

Pois então continue que aqui virei lê-la de quando em vez. Ser noctívaga é uma característica e não um mal. Sobre compras e vendas, uso-as no âmbito particular de moi même. Faço as que posso, ainda que, por questões de falta de habilidade para mais, me limite às compras. O resto dou. Nada possuo que seja rentável, facto que também não me chateia grandemente.