quinta-feira, abril 30, 2015

Murphy e Beckett


É sempre a mesma coisa: que livros trazer? Um seguramente, outro para depois, outro caso não goste de algum dos outros, outro para intervalar, um pequeno que não pese e que possa dar jeito para ler caso acabe outro entretanto. Mas quais? A coisa começa por cerca de uma dúzia e depois vai havendo uma purga até chegar a cinco de bom tamanho.

O primeiro, aquele que vim logo a ler, foi Murphy de Beckett. O que eu me ri todo o caminho! Volta e meia lia em voz alta e o meu marido sorria ao de leve e dizia que tinha que ser, só maluquice. Mas que gozo, que gozo, e tão bem escrito, tão, tão bem.

Ainda pensei em transcrever aqui umas dessas partes hilariantes mas não dá, a coisa tem graça pelo seguimento, pelo encadear das situações. Ou bem que me punha aqui a copiar páginas inteiras ou desvirtuaria tudo.

Por isso, vou transcrever apenas dois pequeníssimos excertos, descontínuos, e sem ser dos cómicos.
Murphy gosta de Célia. Mas Murphy não quer trabalhar pelo que não tem dinheiro, nem quer que Célia, prostituta, trabalhe. Mas Célia quer que ele trabalhe para poderem subsistir. Mas adoram-se, lá muito à maneira deles, especialmente no que a Murphy, um pintarolas do mais castiço que há, se refere.
Até ao ponto em que vou, ainda andam nisto (mas o livro não se resume a este aspecto, eu é que estou a isolar este ponto para contextualizar minimamente estes dois pequenos excertos). 

A parte de si mesmo que ele odiava suspirava por Célia, a parte que ele tentava amar ficava em cinzas só de pensar nela. A voz soprava-lhe na carne um lamento longínquo. 

(...)

Na tortura mercantil - continuou ele - para que as tuas palavras me convidam uma destas coisas se perderá, ou duas, ou todas. Se fores tu, serás só tu; se for o meu corpo, serás também tu; se for o meu espírito, será tudo. Isto, claro está, sob o meu ponto de vista. Então?

Ela olhou-o com uns olhos baços de impotência. (...) Sentia-se, como já se sentira muitas vezes ao falar com ele, salpicada de palavras que, mal eram pronunciadas, se desfaziam em pó, palavras que eram abolidas, uma a uma, antes de se terem podido revestir de um sentido, pela palavra seguinte. Era como uma música difícil que se ouve pela primeira vez.

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O início de Murphy (manuscrito datado de 5 Setembro 1935)
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Andei à procura no Youtube de alguma leitura do texto mas não encontrei nada ou, pelo menos, nada que me interessasse. Em contrapartida, encontrei isto - e abençoo quem inventou a internet e quem a pôs e põe à nossa disposição para que eu agora, tão facilmente, consiga descobrir coisas destas, que me parecem raras, e que me deixam encantada.


"Samuel Beckett" lê um excerto de Watt 



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Permitam que vos convide a descer até ao post seguinte para poderem visitar Lagos, para mim o mais belo destino português a sul.

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