terça-feira, abril 28, 2015

Diz-se que um homem não chora


No post abaixo relatei o meu dia, um dia simples. E porque calhou, enquanto escrevia, ver na televisão o médico que me acompanhou enquanto estive grávida e que fez os dois partos, recordei esses dias tão importantes na minha vida. Foram dias tão iguais que recordar um é quase como recordar o outro, com a excepção de que, no segundo, tive junto a mim, mal saí da sala de partos, a minha filha ainda pequenina que nem três anos tinha, a ver o irmão e a dizer com ar desconsolado, 'o bebé é tão encarnado...'

Mas isso é a seguir. Aqui, agora, a conversa é outra.

Em comentário ao meu post sobre onde estava eu no 25 de Abril de 74, o Leitor Fernando Ribeiro - dono e senhor de A Matéria do Tempo, um dos blogues que considero dos mais interessantes neste vasto mundo da blogosfera, um blogue onde sempre aprendo e onde a selecção dos temas revela um ecléctico e refinado bom gosto - recordou o seu 25 de Abril e os tempos que se sucederam. Comovi-me ao ler as suas palavras.

E porque penso que são poucos os testemunhos daqueles que passaram pela experiência da guerra colonial, permito-me puxar as suas palavras para primeiro plano (esperando que ele não me leve a mal). Junto-lhe ainda o comentário subsequente do Leitor Vítor Manuel.


  
Canção com lágrimas




No 25 de abril eu tinha metido férias da minha comissão militar em Angola, onde estava colocado na fronteira norte. Eu estava cá em Portugal (na Metrópole, como então se dizia), para rever a família, e regressei a Angola em 4 de maio.

Como alferes miliciano que era, eu comandava um pelotão. Metade dos meus soldados eram angolanos, todos negros menos um que era mestiço claríssimo. A partir do 25 de abril, os meus subordinados angolanos passaram a esperar um futuro que antes não tinham podido esperar, porque lhes estivera vedado pelo colonialismo.

Eles esperaram poder aceder a empregos que até então tinham sido tacitamente reservados a brancos, como os de motoristas de táxi ou empregados bancários. Esperaram poder ganhar tanto e ter as mesmas possibilidades de promoção e de aumento de salário que um branco que fizesse o mesmo trabalho que eles. Esperaram poder entrar nos estabelecimentos comerciais que quisessem, sem receio de serem atendidos com maus modos e enxotados por serem negros, e sem terem que pagar mais do que pagaria um branco pelos mesmos artigos. Esperaram ter condições que lhes permitissem viver numa casa que merecesse o nome de casa, e não numa construção precária de adobe ou de blocos de cimento ou numa cubata. Esperaram que os seus filhos viessem a ter os estudos que eles próprios não puderam ter, apesar da sua enorme vontade de aprender. Enfim, eles viram abrir-se diante de si a perspetiva de uma vida muito mais livre, próspera e feliz do que a que tinham tido até então. Esperaram vir a ter, enfim, uma vida sem humilhações e sem pobreza.

Porém, quando no fim nos separámos, as nossas vidas — a minha por um lado e as deles por outro — tomaram caminhos terrivelmente distintos. Enquanto eu pude recomeçar a minha vida e acabar o meu curso de Engenharia num Portugal em paz, os meus antigos subordinados angolanos mergulharam numa guerra incomparavelmente mais terrível do que a guerra de guerrilhas que eles e eu tínhamos enfrentado juntos: a guerra civil que estalou em Angola em 1975 e que só terminou definitivamente em 2002.

Muitos dos meus antigos subordinados angolanos eram oriundos do Huambo (antiga Nova Lisboa), do Kuito (antiga Silva Porto), de Malanje e de outras terras onde a guerra civil atingiu o seu paroxismo. Estes meus antigos companheiros apanharam em cheio um dilúvio de fogo e de metralha que durou anos e anos a fio. Mais tarde ou mais cedo devem ter sido obrigados a abandonar tudo o que tinham e a procurar refúgio no mato ou então a tomar o caminho de Luanda, Benguela, Lubango ou outro sítio onde se pudessem sentir mais seguros. Devem ter enfrentado a fome, as doenças, as minas e sabe-se lá o que mais. Quantos deles terão conseguido sobreviver a tudo isto? Tremo só de pensar. Naquela guerra houve tantos mortos! Tantos corpos despedaçados! Tantas famílias destroçadas! Todos os sonhos e todas as esperanças que, a seguir ao 25 de Abril, estes meus antigos camaradas de armas tinham alimentado, foram varridos por uma arrasadora torrente de guerra e de morte.

De todos eles, só sei o destino de dois. O mestiço claro veio para Portugal em 1984, para junto da família paterna, e vive agora em Évora. Um outro antigo soldado meu, que era negro e por quem quase dei a minha vida num incidente que não importa aqui relatar, alistou-se nas FAPLA (o braço armado do MPLA) e acabou por morrer perto do Huambo em 1982. Ele era um herói.

Diz-se que um homem não chora, mas neste momento estou com os olhos cheios de lágrimas, de saudades imensas de todos eles.


Fernando Ribeiro
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Como me emocionou o comentário do Leitor Fernando Ribeiro!

Palavras sentidas, reveladoras de um Nobre Espírito e Carácter. Sei do que fala!

Sempre defendi aquela Boa Gente e foram angolanos, negros, alguns dos melhores Homens que comandei.

Para o Fernando Ribeiro, meu ex-Camarada, mais novo, a minha Continência e Forte Abraço com a enorme saudade daquela tão bela Angola.

Vitor
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A música lá em cima é "Canção com Lágrimas" de Adriano Correia de Oliveira e Manuel Alegre. 


Transcrevo o texto que acompanha o vídeo: Esta primeira versão, cantada por Adriano, está magistralmente interpretada, tanto pelo cantor como pelo acompanhante, o Rui Pato, que concebeu um acompanhamento perfeitamente enquadrado nas características da peça. A gravação é dos finais de 1969, tendo sido editada em 1970. 

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Permitam que vos convide a descer até ao post seguinte, um post muito pessoal.

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa terça-feira.

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1 comentário:

Fernando Ribeiro disse...

Agora fiquei engasgado. Não se o que lhe dizer, cara UJM. Só me ocorre dizer-lhe muito obrigado. Os meus antigos subordinados angolanos na tropa, que como eu cumpriram o serviço militar obrigatório, merecem todas as homenagens que lhes possamos render. O seu comportamento irrepreensível em todas as situações, mesmo as mais delicadas e as mais perigosas, a sua espontaneidade, a sua generosidade e a sua humanidade foram absolutamente inesquecíveis e irrepetíveis. Foi para mim um privilégio imenso tê-los a meu lado.