terça-feira, fevereiro 13, 2018

As árvores, o fogo, a beleza -- e a sensação de, aqui in heaven, viver no miolo da eternidade





Cheiro-me a fumo. Estive muito tempo a pôr ramos na queima. Vem de lá um calor que aquece o frio que se faz sentir por estes dias. Se nos aproximamos muito, fica quente demais e os olhos queixam-se do fumo. Tentei não me pôr na direcção dele que o cheiro se impregna não só na roupa mas também no cabelo e parece que na própria pele. Mas o vento rodopia, brinca com quem se arma em donzela em momentos em que o que se quer é uma mulher sem medos de cheiros, fumos ou calores.

E é belíssimo o fogo. Belíssimo. Fotografei muito, fascinada pela beleza volátil e efémera das imagens. O cedro fica branco, um rendilhado em branco recortado sobre o rubro das chamas. As folhas da azinheira crepitam ruidosamente e desenham fugazes imagens. E logo tudo se transforma em cinza, em nada.


Foi um dia sereno. Ser dona de casa no campo e não viver dos produtos da terra deve ser quase assim. Fiz uma máquina de roupa, estendi-a depois em cordas presas entre árvores -- a roupa que é seca ao vento e ao sol fica mais rija, muito diferente da brandura morna das máquinas de secar. Fiz o almoço: sargo cozido com batata doce, cenoura, couve-flor, ovo. E, claro, transportei ramos cortados para onde o meu marido fazia a queimada. Todo o dia ele queimou mato apanhado e ainda não deu conta de tudo.

Há pouco, ele viu no telemóvel a distância que percorreu hoje: vinte e sete quilómetros. Parece mentira mas é verdade: não saímos de cá, foi só a ir e vir a transportar o mato e os ramos cortados para perto do bidão. 


Eu muito menos que ele, nem se compara. Nem tenho força nem energia para andar o dia inteiro naquilo. Parte do dia, para mal dos meus pecados, trabalhei como se estivesse no escritório, mails e mails, aprovei compras, facturas, coloquei questões e demais coisas. Estive também a ver as nossas facturas no e-facturas bem como as dos meus pais e a ver com a minha mãe, por telefone, algumas em dúvida. 

E, claro, fotografei e fotografei. Tudo me encanta. Ao longo do dia, a luz vai dando uma graça variável às árvores. Esgueiro-me para apanhar uma subtileza, um brilho dourado sobre o alecrim, uma sombra que encobre uma tonalidade quase misteriosa, o pôr do sol encoberto atrás do cedro quase parecendo que também se pôs em fogo.


Penso: podia viver asim uma eternidade.
No outro dia li que Philip Roth dizia que vivia tranquilamente, sem problemas de saúde ou quaisquer outros e que até dava por ele esquecido da idade e a pensar que poderia viver assim para sempre. Assim eu, também. 
Comecei a ler a autobiografia de Alice B. Toklas: "Gertrude Stein". O tradutor, Nuno Quintas, informa, no início do livro, que nos preparássemos, que aquilo ia ser escrita apressada, com umas vírgulas pouco científicas e com algumas imprecisões que ele não pudera corrigir na íntegra para não alterar demais o original. E, de facto, assim é. Estava a ler e a pensar que aquele texto deveria ser editado. Há várias fotografias de Gertrude e de Alice. A ver se me aguento na leitura (é que eu fervo em pouca água com escritas assim; já me basta a minha que, quando calha relê-la, até me arrepio com a desatenção, a despotuação, a desarrumação). Enfim, logo vos contarei da Alice pela Gertrude. Entretanto, apanhei e dobrei a roupa. E sei lá que mais: a lida da casa, normal.

Já quase à noite, estavamos de roda do bidão, passou o vizinho na sua pequena camioneta. Parou e disse para o meu marido: 'Tem-lhe dado com força, hein...?'. E, de facto, a limpeza que temos feito é assinalável. Escrevi no plural mas nada de confusões: a maior parte do trabalho braçal é obra do meu marido. Não tenho força para empreitadas de grande envergadura. Foi por achar que sim que, no verão, fiz a rotura do tendão supra espinhal (rotura essa à qual, descuidadamente, não liguei patavina até chegar ao ponto de não conseguir abotoar o soutien atrás das costas). Mas já estou melhor e, portanto, aos poucos vou reincidindo e voltando à poda e oas trabalhos esforçados.


Apesar da grande limpeza que temos feito, para onde me vire só me apetece deitar a mão: ou é um cedro que tem ramos quase secos a roçar a terra ou é uma manta de tojo num sítio em que tinha parecido que apenas havia alecrim e rosmaninho, ou é uma aroeira que parece uma esfera, tamanhas as ramificações a toda a volta ou é um caminho que precisa de ser limpo, uns pinheiros que precisam de ser subidos. Etc. Um nunca acabar de trabalho. Um feliz nunca acabar.

Muito bom é também a companhia dos pássaros que andam numa alegria de dar gosto. Quais violinistas, quais virtuosos disto ou daquilo: aqui todos são esmerados cantores e a sinfonia é permanente e variada.


Já quando era quase noite, voltei a dar uma volta para fotografar o fim do dia. Quanta beleza. Quanta, quanta. O ar frio, o céu limpo, incandescente na queda do horizonte.

Depois escureceu de vez. O meu marido esperou que os ramos acabassem de arder para pôr a tampa. Regressámos a casa. Os pássaros já mal se ouviam.

Fotografei de novo mas já não se via nada. Tive que usar o flash. Há uma magia misteriosa num lugar assim, à noite. Ouvem-se alguns ruídos. Devem ser os bichos a recolher-se. Ou outros a saírem das tocas. O cheiro do fumo diluido na atmosfera limpa do lugar também me agrada.


Jantámos. Fiz os telefonemas do dia. Agora a lenha arde na salamandra. A sala está acolhedora. Estou em paz.

Vou, então, saber o que se passou no mundo. Até já.

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