segunda-feira, janeiro 15, 2018

Uma infância para esquecer
[Ainda a propósito das recordações de Emma Reyes]





Estou muito impressionada com o livro de Emma Reyes. São memórias de uma tal incompreensão e violência que custam a crer. No entanto, a forma neutra e mesmo, por vezes, irónica que ela usa para descrever aqueles seus anos tão estranhos (que quase parecem impossíveis) tornam a leitura quase viciante.

Interrompi agora a leitura para aqui vir desanuviar antes de me ir deitar. Emma e a irmã estão agora no convento onte viveram em regime de clausura e (parece-me, pelo que li até agora, também de escravatura) durante quinze anos.

E fico a pensar. Emma acabou por levar uma vida normal, feliz, criativa, bem sucedida. De facto, quando se vê uma pessoa 'normal' nunca se sabe que memórias guarda ou que tormentos passados guada dentro de si.

Tenho assistido a situações tão estranhas que não sei como as recordam quem delas teve igual ou melhor conhecimento que eu.


Por exemplo, estou a lembrar-me. Quando me casei vivia numa torre, lá bem no alto. Era um 15º andar com uma vista arrebatadora. Com sol ou tempestade, de manhã ou à noite, a vista era gloriosa. Lá em baixo, as pessoas, de tão pequenindas, perdiam qualquer significância. A paisagem sobrepunha-se a qualquer coisa mais. De um dos lados da nossa porta, vivia um casal simpático com duas filhas pequenas, gémeas. As meninas usavam tranças tal como a mãe e vestiam vestidinhos soltos, de tecido florido, tal como a mãe. O pai era simpático, um biólogo que eu via muitas vezes na televisão. A mulher tocava piano e tinham um piano branco na sala. Quando a mulher e as meninas não estavam em casa, o biólogo levava outras jovens mulheres lá para casa, uma de cada vez. Tinham ar de ser alunas pois ele era também professor universitário.

Uma vez a jovem mulher esqueceu-se ou perdeu a chave e pediu ao meu marido se podia saltar da nossa varanda para a varanda dela, já que tinha a porta que dava para a varanda aberta. O meu marido, cavalheiro, e sobretudo pensando nas duas meninas, saltou ele. Ainda hoje sinto vertigens e medo quando penso nisso.

Do outro lado, morava um outro jovem casal. Era um casal atípico. Não trabalhavam e tinham comportamentos muito estranhos. Uma ou duas por semana apareciam lá em casa duas crianças. Viémos a saber que eram filhos dela. As crianças tinham ar de serem bem tratadas. A casa deles estava praticamente vazia. Tinham um pano escuro pendurado do tecto, à laia de cortina, um colchão no chão, uma mesa e duas cadeiras. Sei disto porque passei horas espreitando lá.

Alguém me disse que era o pai dela que pagava a renda do apartamento e que os sustentava. Eram drogados. Anos mais tarde, soube que o pai tinha uma pequena loja e vivia com um grande desgosto pela vida que a filha levava. 

De vez em quando não sei se esses meus vizinhos se zangavam porque gritavam muito um com o outro, choravam, atiravam coisas. Havia noites em que ela chorava a noite toda. Outras vezes ouviamo-los a correr. Horas a correrem às voltas dentro de casa. Mas o pior era quando lá estavam as crianças e eles saíam deixando as crianças sozinhas. As crianças choravam de dar dó. E eu punha-me debruçada da minha varanda para a casa deles a falar com os miúdos, a tranquilizá-los, tentando distraí-los e sossegá-los. 


Quando penso nisto fico perplexa com a mentalidade ou com a consciência social daquela altura: nunca nos ocorreu chamar a polícia. Eu tinha vinte, vinte e um anos naquela altura mas a minha tenra idade não justifica isso. Creio que era mesmo a falta de conhecimento de que há situações que devem ser denunciadas como crimes.  Eu tinha imensa pena e preocupação por ver a vida infeliz que os meus vizinhos levavam, magros, mal encarados, incapazes de tomar conta deles, quanto mais das crianças, e tinha uma pena infinita das crianças que tanto sofriam com aquele abandono. Mas nunca nos ocorreu chamar a polícia, talvez porque achássemos que isso seria ainda mais assustador e traumatizante para as crianças. Situações tão dolorosas. 

Uma vez, de madrugada, tocaram à nossa campainha. Era ele. Embriagado, drogado. Não sabia da chave, queria saltar da nossa varanda para a dele. Tentámos impedi-lo e o meu marido queria fazer a mesma proeza. Mas eu agarrei-o, não o deixei. Como os miúdos não estavam lá, tentámos demover o meu agitado vizinho, que esperasse que fosse dia, que depois logo chamava os bombeiros. Mas ele estava frenético, trémulo. Não nos ouviu e num ápice, passou pelo nosso quarto, foi para a varanda e empoleirou-se, saltando para a dele. Pensei que ia cair e morrer desfeito no passeio, quinze andares abaixo, mas milagrosamente conseguiu passar. Eu tremia como varas verdes.

Depois, para nossa tranquilidade, saíram de lá. Respirámos de alívio mas eu pensava muito naquelas pobres crianças.


Os anos passaram.

A mulher recuperou-se, creio eu, porque de vez em quando a vejo. Continua a ter um ar triste mas perdeu aquele ar escanzelado e gasto, tem um ar normal. Vi uma vez que tinha as unhas muito roídas e que que fumava muito, e tem um ar que parece ansioso. Nunca deu mostras de me reconhecer. Ninguém deve imaginar o que era a vida dela naqueles tempos. Ao homem via-o, por vezes, drogado, acabado. Não sei se ainda vive, há muitos anos que deixei de vê-lo. Aos miúdos perdi o rasto.

Não sei se mais alguém para além de nós soube do que ali se passava. Eles dois, sempre tão drogados, não sei se percebiam o que faziam ou se guardaram disso alguma memória. Talvez apenas os miúdos, que já não são miúdos mas adultos uns três ou quatro anos mais velhos que os meus filhos, guardem a mágoa do que sofriam naqueles dias e naquelas longas noites em que ficavam entregues aos cuidados da mãe.


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As fotografias são de Steve McCurry

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e
mais abaixo ainda, tenho um passeio muito variado.

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