sexta-feira, novembro 03, 2017

Tópicos de um dia com coisas boas no meio de complexidades
(que se calhar são da treta)





Dias complexos cheios de assuntos complexos, estes meus.
Claro está que isto é tudo relativo. A minha complexidade vale menos que uma casca de caracol para si, meu Caro Leitor, e vale seguramente também menos que zero para quem esteja doente, desempregado ou se sinta irremediavelmente abandonado. Mas, dentro desta relatividade, a complexidade que teima em querer tomar conta dos meus dias é complexa demais para o meu gosto.
No entanto, quando me vejo imersa à força num caldo de complexidade, o meu ser profundo chega a um ponto em que, sem stress e grandes anúncios, diz devagarinho e acho que só eu é que o ouço: que se lixe a complexidade. E, lixando-me eu para a complexidade, arranjo maneira de, por um bocado, geralmente à hora de almoço, saltar fora.
Sabendo disto, e por outras ponderosas razões, só aceito almoços de trabalho se não tiver como me escapar. Caso contrário, é um bocadinho de tempo meu, só meu, e azarinho para o resto.
Pronto. Quero eu com isto dizer que, à horinha em que já estava pelos cabelos e com vontade de mandar bugiar quem se aproximasse com mais gaitas (e digo gaitas para não dizer tretas ou, mesmo, merdas), peguei na carteira e nas chaves do carro e ala moça que se faz tarde.


A hora de almoço foi curta e, para ajudar à festa, foi um filme para conseguir descobrir lugar para deixar o carro. Portanto, o almoço foi naquela base, não mau de todo mas rápido; e ainda a última garfada ia a caminho do esófago, já eu ia a caminho de uma livraria.

Minutos sagrados que me salvaram o dia. No entanto, a realidade teima em querer estragar-me a flanação:eu a entrar e mais um telefonema e mais conversa e mais conversa e logo uma em que não pude furtar-me a dar uma desanda em quem me ligou. Mas mal a desanda estava despachada, já eu circulava entre as novidades e já eu salivava perante os pitéus que ali se me ofereciam. Em momentos assim desaparecem complexidades, maçadorias, ralações. Tudo. Disso não resta nada. Se alguém me abordasse naquele momento e me perguntasse se eu tinha coisas que me preocupassem, espontaneamente diria que não. Durante aqueles breves minutos sou livre, despreocupada e feliz.

Trouxe:

Nova Antologia Pessoal de Jorge Luis Borges, edição Quetzal  

Entrevistas da Paris Review, 3, edição Tinta da China

Que alegria. É como ir a um mercado e descobrir um peixe fresco, fantástico, raro, e umas hortaliças tenras e perfumadas como poucas vezes aparecem e umas frutas maduras, sumarentas, gostosas, a saberem mesmo a fruta, e vir para casa toda feliz da vida, sentindo que o dinheiro gasto foi uma pechincha face à qualidade das iguarias descobertas.


Mas logo tive que ir à pressa para o carro e, mal comecei a conduzir, já estava a fazer outro telefonema e logo, de novo, enfiada até à ponta dos cabelos na complexidade. E depois mais uma tarde daquelas.

Há bocado, já na minha rica casinha, estava a despir-me no quarto e a falar com o meu marido, toca o telemóvel. Pensei que era a minha filha que não me tinha atendido quando eu lhe tinha ligado, ao ir no carro. Quando cheguei ao pé do telemóvel, calou-se. Afinal não era ele. Era aquele com quem tinha falado no carro depois de almoço, que anda enterrado em complexidades ainda piores do que as minhas e com quem estarei numa reunião em que amanhã vamos estar e que, pelo tema e pelos intervenientes, se adivinha extraordinária (para não dizer tendencialmente tenebrosa).

Depois, então, ligou a minha filha. Depois o meu filho. E aí a mãe-galinha que eu, acima de tudo, sou, ficou mais tranquila sabendo-os bons, os meninos também bons, tudo bom (desde ontem...), e já me parecia que, estando o dia a acabar em paz, nem uma só guerra tivesse havido durante o dia.
Ser primária tem coisas boas. Aliás, acho que só tem coisas boas.
Entretanto, já jantei e já escolhi a roupa para amanhã, que me levanto cedo, não tenho tempo para grandes experimentações e, nisto, não pode haver lugar a riscos.

Com isto tudo, só há bocado é que consegui sentar-me no sofá e, obviamente, passados uns minutos, estava a adormecer. Talvez cinco minutos mas o suficiente para agora me sentir acordada.

Tenho aqui os dois livros que serão certamente altamente estimulantes. Mas, se agora me ponho a lê-los, sou capaz de adormecer de novo.


Portanto, tenho aqui o Borges ao meu lado e só não me sinto envergonhada por não estar a dedicar-lhe a merecida atenção porque sei que ele, por três razões que me abstenho de explicitar, não me vê. Quanto aos escritores entrevistados, limito-me a passar-lhes a mão pelo lombo. Melhor, pela lombada. Melhor, pela capa. Tem uma textura que me agrada. Tomara que chegue o fim de semana para me atirar a eles.

Tirando isto, o que tenho a dizer é que, enquanto jantava, vi um pouco de uma reportagem sobre os tarefeiros na Saúde e o que tenho a dizer é que nunca percebi estas opções e que, em geral e em abstracto, é tema que me enoja. O mundo derrapou para uma encosta de acentuado declive onde as decisões assentam numa absoluta subversão de valores que nunca podem levar senão ao buraco. Não é só na Saúde: é em todo o lado, não apenas do Estado como em muitas empresas. Recorre-se a empresas de negreiros que exploram mão de obra barata e a vendem como 'serviços'. Não quero falar mais disto aqui porque senão não me calo e o post já vai longo demais. 


Também vi um bocado de uma reportagem que me deu alguma satisfação: tinha a ver com o BES e com a possibilidade (presumo que remota) de anular a resolução do BES. Era bonito. Juro que gostava. Sempre achei que a resolução do BES foi uma aberração, uma leviandade, um nonsense pegado, um monumental erro. E gostava, mas gostava mesmo, se as sardinhas voltassem ao prato. Julgo que tal seria já materialmente impossível mas juro que gostava que fosse não apenas possível como mandatório.


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Parece que esta sexta-feira, finalmente, vai haver chuva que se veja. Tomara, que já não se aguenta este tempo mais estranho.

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As fotografias são da autoria de Alex Robciuc

Tom Waits interpreta Strange Weather

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E agora vou ver se acordo a sério para ver se me inspiro para continuar com a historinha que comecei ontem.

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