sábado, agosto 26, 2017

Esculpir a pedra


Quando eu andava no liceu tinha uma colega de quem eu gostava muito. Para além de ser uma boa pessoa, nada conflituosa, a milhas de intrigas, ciúmes ou mal entendidos de qualquer espécie, tinha uma característica que me fascinava: desenhava muito bem. Uma vez, fez umas bailarinas que me deixaram perdida de admiração: com umas pinceladas as meninas que dançavam ficavam com tutus, os tules eram transparentes, os cabelos bem apanhados. E as pernas tinham movimento e os braços elegância e as mãos delicadeza.


Duvido que ela conhecesse as meninas bailarinas de Degas. Eu assistia espantada à sua mão que, de uma penada, trazia vida ao que ali nascia.

Na sala, sentava-se atrás de mim. Toda a gente sabia porque o fazia. Era fraca a matemátiva, a física e, basicamente, a tudo o que tivesse que ver com números. E eu deixava-a copiar tudo o que ela quisesse. Bastava que me desse um toque nas costas que logo eu escrevia de lado, de modo a que ela, mal apanhasse os professores distraídos, pudesse orientar-se.

Não têm conta as vezes que ela e eu fomos ameaçadas de que nos anulavam os testes. Mil lições de moral eu recebi, tentando explicar-me que eu não estava a ser amiga dela pois ela assim não se esforçava. Na minha inocência, nunca dei ouvidos a esses sensatos ensinamentos. Por vezes, antes dos testes ela vinha tirar dúvidas e eu percebia que ela não sabia nada nem nunca haveria de lá chegar. Se eu não a deixasse copiar, ela teria negativa -- disso eu tinha a certeza. Eu era a melhor aluna da turma e ela nem por isso e, no entanto, eu nutria por ela profunda admiração, como se soubesse, no meu íntimo, sub-conscientemente, que ela se situava num patamar muito superior ao meu. Nunca na vida eu seria capaz de desenhar como ela, de pintar como ela. Lembro-me de uma pintura do mar. Todos fizemos pinturas básicas. Só o mar dela tinha movimento, reflexos, profundidades, cheiro, som.

Ela poder prosseguir a sua vocação sem ser apeada por não perceber boi de equações ou fórmulas químicas parecia-me da mais elementar justiça. Sempre tive muito claro dentro de mim que eu deveria ajudá-la a ver-se livre daquelas disciplinas que lhe davam conta do juízo para poder dedicar-se, livremente, àquilo de que gostava. 

Hoje é uma escultora prestigiada com obra espalhada pelo mundo. Não se limitou ao desenho e à pintura, avançou pela materialidade das imagens que se formavam na sua cabeça. Mostrou a garra que tinha e, pelos vistos, as fórmulas matemáticas e as leis da física e da química não lhe têm feito grande falta. Ou talvez tenham, que a matemática e a física são sempre úteis. Mas não devem servir para castrar quem para aí não está, de todo, virado. Trabalhar a pedra não é para qualquer um: é preciso força, persistência, uma grande energia e entrega. Não é qualquer princesa que consegue dominar os elementos. 

O vídeo abaixo mostra bem como é.

An artist measures her face inch-by-inch. 3 weeks later, it's a stunning masterpiece.


Anna Rubincam, a escultora de quem acima mostro duas das suas obras



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E queiram, por favor, descer para verem como pescar um beijo
Perdão, um peixe. 
Perdão, peixes aos beijos. 

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