quinta-feira, junho 15, 2017

Sou aquela que transgride o abismo da paixão





Todos os dias, por mera rotina, se pesava mas, também todos os dias, se esquecia de reparar no peso. Reparava, isso sim, que a magreza avançava mas isso estava longe de a preocupar. Era como se vivesse desligada dos assuntos normais, incluindo o da necessidade de se alimentar. Foi consumindo o que havia no frigorífico e na despensa, mas cada vez comia menos porque o organismo parecia precisar de cada vez menos alimento.

Era raro o dia em que não ouvia tocar à campainha mas nunca abria a porta ou, sequer, perguntava quem era. Se era de manhã, pensava que devia ser o carteiro, se era de tarde, pensava que devia ser distribuição de publicidade. Também o telefone tocava várias vezes mas apenas falava com a mãe. Eram sempre conversas breves mas a mãe não estranhou pois nunca a filha tinha tido tempo para cortesias ou carinhos. Um dia acordou a pensar que tinha que voltar a ligar para o trabalho e assim fez mas não prestou atenção às palavras preocupadas da secretária, nem atendeu aos seus conselhos. Limitou-se a dizer que tinha sucedido um imprevisto e que ia gozar férias antigas, ela que a avisasse quando os dias estivessem quase a acabar. E agradeceu e desligou. Parecia não conseguir suportar a sua vida de sempre.

Um dia resolveu esvaziar a estante onde guardava os discos e os cd's. Tudo espalhado pelo chão. Não se lembrava de ter comprado grande parte do que via. Nem sabia de que se tratava. Pensou que, se calhar, alguém que lá tinha morado os teria comprado. Pensou: a viver aqui durante muito tempo apenas um. Mas, depois desse, vários por lá tinham ficado algumas vezes. Talvez não vários mas alguns. Não tentou lembrar-se de todos. Economizava energias. Ou talvez tudo aquilo, ou quase, tivesse sido recebido como presente. Provavelmente não tinha tido tempo, sequer, para os ouvir uma única vez.

Um em especial parecia-lhe ali completamente deslocado, em contramão. Pô-lo a tocar. 

Depois encostou a cabeça à janela. E aos poucos foi escorregando até ficar deitada no chão, braços e pernas abertas, a olhar fixamente o tecto. E as lágrimas voltaram a correr.

Nessa noite, estava ela ainda nua, tocaram à campainha. O telefone também já tinha tocado várias vezes. Não prestou atenção. Depois ouviu bater com a mão e ouviu gritar o seu nome.

Continuou indiferente.

E, então, ouviu a porta a abrir-se. Estava ela sentada num banquinho baixo a ver fotografias e a tentar decifrar o significado de umas palavras escritas num papel 

Sou aquela que trangride
o abismo da paixão

Ora corpo que se entrega
ora escrita no seu voo

entre o fogo e a razão

quando ele se aproximou. Ela olhou-o sem curiosidade. Ele baixou-se, segurou-a pelos ombros, levantou-a. Perguntou-lhe como que com raiva: 'Mas o que é isto? O que se passa? Não atendes o telefone, não dizes nada, não respondes aos mails, não respondes quando tocam à campainha. Não te ocorre que nos preocupamos contigo? Estás doida ou quê? Ou doente? Que magreza é esta? O que é isto? O que se passa?'

Ela olhou-o nos olhos, indiferente.

Ele abraçou-a. Ela manteve-se como morta.

'Já foste ao médico? Aconteceu alguma coisa?', perguntou ele várias vezes.

Ela respondeu com uma voz que não parecia a sua. 'Não aconteceu nada. Apenas me apeteceu arrumar a casa'

Ele olhou em volta. A casa estava caótica. Livros, discos, molduras, papéis, objectos indistintos, tudo espalhado pelo chão.

'Tu não estás bem, Lu. Tens que ir ao médico. Veste-te, vou levar-te às urgências.'

Ela disse com uma voz muito tranquila: 'não. Estou bem'. 

'Mas aconteceu alguma coisa? Conta. O que foi? Alguma coisa deve ter sido', insistiu ele.

Então ela sentou-se, séria e formal como se não estivesse nua e desamparada, e falou com uma voz que parecia, de novo, a sua. 'Estiveram cá. Remexeram tudo. Levaram coisas, pastas, papéis, o portátil da empresa.' 

Ele sentou-se. 'A sério...? Também aqui? E não disseste nada? Falaste com o Manel?

Ela respondeu: 'Disseram que não podia falar contigo nem com ninguém. Deves saber disso. A ti devem ter-te dito o mesmo. Não sei o que estás aqui a fazer.'

A voz ansiosa, as mãos nervosas, ele estava mais velho: 'Mas com o Manel devias ter falado, é o teu advogado.' 

Fria, indiferente, ela: 'Não quero saber de nada. Nada faz sentido. Preciso de descansar. Olho para trás e nada faz sentido. De tudo o que vivi, não sobrou nada. Tudo se confunde, não consigo encontrar uma linha condutora, parece que foi tudo um equívoco.' 

Ele, cada vez mais preocupado: 'Tu tens que ter cuidado com o que dizes, tens que te tratar, não podes falar.'

Ela olhou-o longamente, sem emoção. Não reparou como ele ficava cada vez mais assustado. Depois disse-lhe: 'Já é tarde, vai-te embora antes que a tua mulher te faça uma daquelas cenas.'


Ele encolheu os ombros e tentou abraçá-la mas ela rejeitou-o. Fez o gesto de o acompanhar à porta. Depois, quando ele estava a dirigir-se para a saída, chamou-o: 'Olha, lembras-te de quando fui a Marrocos, as temperaturas tão altas, eu não queria ir, e tu quase impuseste que eu fosse, uma oportunidade de vida ou de morte, dizias...?'. Ele olhou-a, sem compreender. Ela continuou: 'Lembras-te de como me dizias que eu andava bonita? E eu dizia que não queria ir, que naquela altura não?'. 

Enquanto falava, segurava um leque rendilhado em azul turquesa. 'O primo do príncipe ofereceu-me este leque na segunda vez que foi ver-me ao hospital, estava tanto calor lá'.

Ele olhava-a sem perceber. 'Ao hospital? Mas que hospital?'.

'Resolveu-se por si. Eu não sabia o que fazer. Melhor para todos. Estava sem coragem para acabar e sem coragem para continuar. Aquele calor, a violência daquelas viagens e daquelas intermináveis negociações resolveram o assunto'

Ele estava encostado à parede: 'Nunca falaste nisso. Devias ter-me dito.'

'Para quê? E as negociações correram bem. Era o que te importava. Mas sabes o que percebo agora? Que, disso tudo, o que sobrou foi o leque. Até o prémio chorudo que recebi na altura se evaporou. Belos investimentos que fiz na minha vida...'.

Ele não disse nada. Deixou que ela o levasse até à porta. Iam em silêncio.

Ela não soube que, logo que chegou à rua, ele deitou a mão à cabeça, esfregando o cabelo, preocupado. Ela não soube que ele ia telefonar mas que logo se arrependeu. Ela não viu que ele era agora um homem acossado. Ela não viu que ele ia curvado, magro também. Ela não viu que, quando arrancou no carro, por uma vez ele ia devagar, como se não soubesse qual o seu destino.

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[O poema que plantei no meio da prosa é, uma vez mais, da Maria Teresa Horta in Poesis]

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Este texto que acabei de escrever vem na continuação de Sem rasto
e continua em Um coração negro como a noite

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