segunda-feira, junho 19, 2017

Com parte do meu país caído num inferno em chamas, não quero perder tempo a perguntar:
de quem é a culpa?
[E, depois de se mostrar junto a um corpo queimado (e, vá lá, tapado), o despropósito de Judite de Sousa junto da Ministra Constança Urbano de Sousa perguntando-lhe se não se demite se o número de mortos ultrapassar o da Ponte de Entre-os-Rios]


Estou na minha casa na cidade. O ar condicionado está ligado. A temperatura aqui na sala é agradável. Na televisão vejo carros queimados, ouço pessoas contando a sua angústia. O calor dos incêndios que ainda lavram não chega aqui. O cheiro a cinza e desolação não perturba a tranquilidade que me rodeia.


Limito-me a sentir o calor do inferno através das imagens que a televisão não se cansa de mostrar. Começaram a chegar os comentadores mas, felizmente, pelo menos do que tenho visto, têm tido a decência de chamar gente que sabe de florestas. Engenheiros, gente que fala uma linguagem técnica, que parece fazer sentido.

Não deslizo facilmente para as conversas de efeito, não adiro instantaneamente a movimentos de massas em que todos choram ou gritam ou cantam em uníssono. Não sou de andar em procissões com velas na mão e orações na boca ou em manifestações com bandeiras e palavras de ordem. Tendo a pensar por mim e tento guardar algum distanciamento das situações em que a exponenciação emocional facilmente tolda o discernimento, tentando que a racionalidade sobreviva à efervescência imediatista que, não raramente, é péssima conselheira e, frequentemente, produz efeitos nenhuns ou efémeros.


Episódios climatéricos extremos e conjugados dificilmente se controlam com meios dimensionados para situações normais. Esquecer isto é esquecer a luta contra o aquecimento global e a favor da defesa sustentada do planeta. É do domínio da bipolaridade ser um defensor do ambiente e de outras causas nobres e justas e, ao primeiro sinal de que o aquecimento extremo começa a aparecer com alguma frequência, atribuir culpas à ministra ou ao senhor que atira foguetes na festa da aldeia.

Também de nada serve olhar para o mato na beira da estrata e querer tirar consequências que são banalidades mil vezes repetidas. Ordenar territorialmente um país composto por pequenas parcelas não é coisa sobre a qual se fale com ligeireza, camuflando a ignorância com pedidos de demissão ad hoc. Falar à boca cheia da incúria de quem não cuida do seu mato é não saber que grande parte dos pequenos proprietários é gente que herdou parcelas mas que vive longe, nas cidades, gente remediada, sem dinheiro e sem conhecimentos para saber como melhor limpar ou organizar os pedaços de terra que, mais do que riqueza, são um peso e uma fonte de problemas.

Não posso falar do que não conheço mas sei o suficiente para poder afirmar que parte do mal do meu país é ter sido governado, vezes de mais, por gente impreparada, ignorante. E refiro-me não apenas ao governo propriamente dito mas também às autarquias, frequentemente nas mãos de interesses partidários do mais primário que se possa imaginar, gente viciada em jogos de interesses de baixo calibre, caciquismo iletrado e estúpido.


Ordenar territorialmente um país não é coisa para meses, sequer para meia dúzia de anos: é coisa para uma geração, talvez até mais. E requer inteligência, liderança, conhecimento, amor ao país, elevação de espírito -- e persistência, muita, muita persistência. Não é coisa para ser discutida nas redes sociais onde se pede a demissão de alguém entre selfies e fotografias de saladas, para comentadores que comentam tudo o que vem à rede, para jornalistas que fazem reportagens orgásticas no meio de escombros e famílias apavoradas. Organizar territorialmente um país e, nomeadamente, pensar a gestão de florestas e de baldios é assunto sério e muito pouco mediático.



Tomara que este Governo e este Presidente da República percebam isso e saibam transmitir a um país em estado de comoção que não é apontando o dedo a um ou outro bode expiatório que se resolve o que quer que seja: é, por uma vez, introduzindo seriedade e ponderação na reflexão que é preciso levar a cabo, com vista a traçar um plano plurianual que coloque o interesse de Portugal acima do interesse dos partidos.


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As fotografias provêm do Público. A última é de Adriano Miranda.

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Post scriptum

Não tenho vontade de comentar a atitude de alguns jornalistas que exploram ad nauseam os sentimentos de perda da população ou o efeito de devastação que um incêndio desta dimensão forçosamente deixa para trás. Vi imagens patéticas que diminuem a já de si débil imagem do jornalismo que se pratica em Portugal e apenas posso dizer que lamento que as estações não transmitam instruções aos seus funcionários para respeitarem a situação e não se portarem como abutres à solta. 


No entanto, apesar de não me apetecer falar nisso -- porque me incomoda demais e porque penso que esta comunicação social desenfreada na busca de shares tem sido em grande parte culpada pela mediocridade que se instalou na maneira de pensar das pessoas -- não posso deixar de me referir, ainda que brevemente, a Judite de Sousa. 


[Vídeo mostrando Judite de Sousa junto a um corpo queimado 

-- o exemplo de quão baixo o jornalismo pode descer]



Depois de a ter visto de microfone em punho mostrando que vale tudo, junto de corpos sem vida e sobre amontoados de paredes ruídas e a andar, histericamente, de marcha atrás pela fatídica estrada, sempre a puxar à reacção emotiva, vi-a, num absoluto despropósito e com total insensibilidade, a fazer a contabilidade comparativa de mortos face ao caso da ponte de Entre-os-Rios, perguntando à exausta ministra Constança Urbano de Sousa se, caso o número de mortes aumente, não faz como o Jorge Coelho e não se demite. Acho que a falta de ética, de decoro, de respeito pela situação e pela sua própria dignidade atingiu, nesse momento, um nível demasiado baixo. 


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