sábado, junho 10, 2017

Algologistas, violas campaniças e um motoqueiro de que não me esqueço





Dias tão longos estes meus. É tão tarde, agora que consigo ligar o computador. Estou praticamente a dormir. Não tenho conseguido ver e, muito menos, responder aos muitos mails que enchem a caixa de correio. Uma semana difícil em dias de calor e afazeres.

E muito trânsito. Hoje pensei que talvez pudesse gravar-me porque, não podendo escrever, podia ir falando e não desaproveitava tanto o tempo.

Por vezes, enquanto ali vou, ouço com atenção gente de outro mundo. Hoje ouvia com interesse um algologista. Não sabia que havia algologistas. Fiquei a saber que são botânicos que se dedicam ao estudo das algas. Frequentemenete penso que são vidas bem melhores que a minha. Ele falava de variedades de algas. Umas grandes, castanhas, que é como se fossem as árvores do fundo do mar. Estas vão rareando na costa portuguesa. Depois contou que dos milhões de toneladas que se consomem, a larga maioria são de aquacultura e que os chineses até as adubam e que há abusos. Tudo novidade para mim. Penso que, com tanta costa, porque não estamos nós, em força, nisto das algas? 

No outro dia era a viola campaniça; e ali vou eu, a caminho de reuniões em que se vão decidir negócios ou admissões de pessoal ou coisas assim e, em vez de ir concentrada nesses temas, vou é a ouvir de gosto sobre quem faz melhor que ninguém as violas campaniças ou quem as toca com sabedoria. A fala amorosa de quem ganhou amor a esta guitarrinha popular, o prazer de quem se apaixonou pela música que nasce dela e das gentes do povo -- e eu, encantada, a ouvir, a aprender. De vez em quando, quando parada num semáforo, pesquiso no google sobre o que ouço e, até essa altura, desconhecia. Dessa vez foi: Como é uma viola campaniça?

Esta sexta-feira, de tarde passei à porta de um edifício em que já trabalhei. Parei no semáforo lá à porta, vi a passagem de peões e lembrei-me de há uns anos.

Nessa altura, eu não punha o carro lá no parque. Aquilo era apertado, para eu arrumar no local marcado no chão que me estava destinado tinha que ir de marcha atrás e, como os meus colegas eram madrugadores e eu não, quando eu lá chegava já eles lá tinham os carros e eu tinha que ter cuidado não fosse dar cabo dos carros deles. Então, marimbava-me para o meu lugar no parque e deixava nas ruas lá por perto e ia a pé. Um belo dia ia eu a entrar no edifício e reparo que há sangue no passeio. 

Pergunto à recepcionista, por sinal queridíssima pessoa por quem nutri verdadeira estima, que sangue é aquele. Diz-me que fulana de tal, minha colega, amiga e companheira de almoço, tinha acabado de ser levada para o hospital. Atropelada. Uma perna escalavrada, coisa feia.

Lá fui logo para ter com ela. Mal. Nem a consegui ver. Tinha que ser operada. Tendões rasgados, ferida extensa, fractura. Para ela, esse foi o princípio de uma odisseia que haveria de durar anos. Fez várias cirurgias, uma recuperação nada fácil. Mas a coisa haveria de ser complicar pelo facto do causador do atropelamento em plena passadeira de peões ser um motard sem carta de condução e sem seguro.

Quando já estava funcionalmente quase boa, na verdade estava defeituosa, a perma horrível ali à altura da canela, bem à vista. Quis fazer cirurgia plástica e o seguro normal já não cobria isso. Quando um condutor não tem seguro há um seguro geral que, creio eu, o Instituto dos Seguros garante. Só que também não cobria a reconstituição estética. Resolveu, então, aconselhada pelo advogado da empresa que desde o início se prontificou a ajudá-la, avançar com um processo contra o condutor. Por essa altura, ela alimentava um ódio de estimação em relação ao homem que, no dia do acidente, nem conseguiu ver. Eu apoiava-a nessa demanda pois ninguém merece ver a vida virada do avesso, passar a vida a caminho do hospital e gastar um dinheirão, por causa de um estupor que vem a abrir e nem se rala de andar a conduzir, na candonga, quase matando a minha amiga.

Um dia, antes de avançar com o processo, o advogado resolve promover uma reunião entre ela e o malandro. Ela, pessoa meio atarantada nestes apertos, pediu-me para ir com ela. Claro que fui. Pois à hora devida, com espanto, vemos um pobre homem, muito magro, ar muito pobre. Tímido, cheio de medo, confessa-se analfabeto. Ia numa mota barata para arranjar uma horta na berma da estrada lá ao fundo, distraíu-se com o sol, não viu o sinal, não viu a senhora. Não tinha dinheiro. Estava preparado para se deixar prender, aceitava o que quisessemos fazer com ele, assumia a culpa, já a tinha assumido, já estava metido em trabalhos, já lhe tinham ficado com a mota, uma mota velha. Já não tinha como ir cuidar da horta.

Eu e ela e o advogado nosso colega logo ali arrependidos, tão arrependidos, e, mesmo sem falarmos uns com os outros, logo de acordo em deixarmos ir em paz o pobre homem. A minha amiga, completou os tratamentos a expensas próprias mas só até certo ponto. Manteve uma cova muito feia na perna e umas dores agudas que a incomodam quando o tempo muda. Não quis continuar a afundar ali mais dinheiro. Mas nem pensar causar ainda mais angústias na vida daquele homem cujo rosto e cujo corpo evidenciavam uma vida difícil.

Ao parar ali, naquele semáforo, ao pé daquela passadeira, lembrei-me da minha amiga e lembrei-me daquele homem tão pobre. Ela, antes, dizia que ele lhe tinha desgraçado a vida e ele, coitado, disse também que naquele dia tinha desgraçado a sua vida.

E era isto que eu pensei dizer para um gravador quando estava no carro. Se depois pudesse converter a fala em escrita, à noite podia dormir em vez de estar aqui a escrever quase de olhos fechados.

Quando estava a pensar naquele parque de estaconamento também me lembre i de outra coisa e pensei contar-vos mas agora já não consigo. Fica para outra vez. Aliás não sei se já não a contei.

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E tirando isso não sei de mais nada de que a esta hora me apeteça falar. Aliás, sei, sei sim. Mas não é coisa que possa reduzir a meia dúzia de palavras e o sono é muito e não me arrisco a escrever sobre isso sem censura interna. A esta hora e cansada como estou, temo que já não consiga ter mão em mim. Portanto, com vossa licença, fico-me por aqui.

Presumo que o texto aqui exposto esteja também defeituoso, letras a mais ou a menos e de vírgulas nem quero nem dizer nada porque, lá está, pecarei por defeito. Relevem, por favor, mas já não consigo rever, já nem os dedos se mexem sobre o teclado.

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As imagens que puderam ver são retratos da autoria de Steve McCurry e, naturalmente, não têm nada a ver com o texto.  Lá em cima, Pedro Mestre, mestre da campaniça, visita Mariana Maria na sua taberna em Ourique Gare.


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Um sábado muito feliz a quem por aqui me lê.

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