quarta-feira, abril 12, 2017

Sylvia Plath e Ted Hughes
- ou a violência de algumas paixões





Leio que as últimas cartas de Sylvia Plath à sua terapeuta, escritas na última semana de vida, revelam violência doméstica por parte de Ted Hughes.


Leio o artigo tal como li um outro ou, como antes, alguns estudos biográficos: com aquela sensação de que há pessoas que transportam dentro de si a atracção pelo abismo.

Unseen Sylvia Plath letters claim domestic abuse by Ted Hughes


Unpublished correspondence from the poet to her former therapist records allegation of beating and says that he told her he wished she was dead (...)

ou

The emergence of some of her final letters will cast new light on her violent marriage to Ted Hughes and how it inspired her poetry



Sylvia sofria de depressões, já tinha tentado antes o suicídio e automutilava-se. O seu relacionamento com Ted estava tingido, desde o início, por episódios de violência. Não seria violência agressiva mas sim uma forma excessiva e desestruturada de manifestar afecto ou paixão. Ela mordia-o, ele afastava-a, ela atirava-se-lhe nos braços, ele amava-a, ela amava-o.


Bonita, ar dócil, Sylvia sofria sem motivo ou arranjava motivos para sofrer. Tiveram dois filhos mas ela sofreu também um aborto. Acusava-o por isso. Aparentemente ele terá sido violento, ela diz que ele não queria mais filhos. Pode também ter acontecido que ele, vendo a instabilidade dela, tenha achado que ela não tinha condições para ter mais.


Não consigo, a partir do que leio, achar que ele foi um bandido tal como não consigo concluir que ela foi uma vítima -- ou o contrário. Parece-me, sim, uma relação complexa que encerrava, no mais íntimo do amor que os unia, um prenúncio de tragédia.

A poesia, sempre presente naquele amor, não foi a tradução de um estado romântico mas, antes, a procura das vísceras onde se albergava o fogo que os consumia.

Até que, um dia, ela descobriu que ele lhe era infiel e não conseguiu suportar a dor que isso lhe causava. A sua natureza frágil levou-a para o fim que, desde o início, a atraía.

Lendo sobre a sua vida em conjunto, não consigo deixar de pensar num casal de amigos de que aqui já falei. Éramos três casais muito amigos. Eles colegas de curso do primeiro ao último ano e depois inseparáveis. Enquanto estudávamos e namorávamos, já ela se destacava. Qualquer dos restantes apreciava a boa vida, conversar, rir, flanar, sair à noite. Ela acompanhava-nos mas, geralmente, punha-se ao largo pois tinha sempre que estudar. Exigentíssima para consigo própria. Das três raparigas, eu achava que ela era a mais bonita. Vistosa. E com uma voz com um timbre enganadoramente sensual. Ele, pelo contrário, era o mais feio dos três rapazes. Uma simpatia, um bem disposto mas, fisicamente, nada de fantástico. Pois os ciúmes que ela tinha dele não dá para explicar. Achava que todas as mulheres do mundo o queriam roubar. Por mais que lhe demonstrássemos a irracionalidade daquela paranóia, nada a convencia. Nem o espelho. Era possessiva, quase neurótica, quase obsessiva. E aqui o 'quase' talvez seja bondade minha.

Num ambiente perfeitamente descontraído em que havia sempre algum a dizer alguma maluquice que deixava todos a rir, ela raramente ria e acho que nunca estava verdadeiramente tranquila. Todos se metiam com ela mas ela, verdade seja dita, também não se importava com isso e dizia francamente o que achava de cada um, não raramente opiniões pouco abonatórias.

Casaram. A paixão dela por ele e, estou em crer, a dele por ela eram uma fogueira que os queimava. Aos fins de semana circulávamas de casa em casa. Contudo, nunca tínhamos vontade de ir a casa deles. Era normal chegarmos lá e o almoço não estar feito e muitas vezes tive que ir eu para a cozinha ver o que se conseguia arranjar. Nesses dias ela estava com os olhos inchados, ele triste e apagado. O mais desconcertante é que ele mostrava pudor enquanto ela falava abertamente do que se passava, descrevendo crises perfeitamente excessivas, sempre por razões absurdas.

Sendo médica, mostrava o desconhecimento mais incrível que se possa imaginar a nível sexual. E, uma vez mais, não se coibia de colocar abertamente as mais desconcertantes dúvidas. Felizmente algumas que se referiam às preferências sexuais dele foram-me colocadas só a mim, sem que o pobre assistisse às minhas lições. Ela tomava por taras inaceitáveis as práticas mais banais. E não intuía nada nem sentia vontade de se aventurar. Perguntava-me, ao pormenor, como fazer e eu, entre estupefacta e divertida, lá lhe explicava tintim por tintim.

O curioso nisto é que, apesar de tudo, ele tinha uma paciência infinita para com a sua bela e bizarra mulher.

Viviam num casarão: pé direito muito alto, chão de soalho corrido, grandes portas com janela, janelas com varandins. A decoração era também atípica, muito clássica, grandes tapeçarias, grandes castiçais. Tinha um piano no qual a mãe, uma senhora com um porte distinto que, por vezes passava por lá, tocava como se estivesse a actuar perante grande plateia. A filha ignorava a mãe. Aliás, não escondia o desprezo que sentia por aquelas manifestações artísticas mas meio despropositadas. Nós nem sabíamos bem como lidar com a senhora mas ela quase punha a mãe porta fora.

Mais tarde tiveram uma filha, ao fim de um processo que quase o deixou a ele à beira da loucura. Os instintos maternais dela eram nulos. Gostava da filha mas quase como se gosta de um doente de quem se trata por dever médico.

Tinha a menina um mês, ao irmos passar o domingo a casa deles, à chegada, outra vez uma crise. Contou-me que tinha tentado suicidar-se. A razão, outra vez, uma ninharia absurda. Tudo ela transformava numa tempestade. Mas quase me comunicava a tentativa de suicídio como se de uma fatalidade inevitável se tratasse. Ele destroçado.

Um dia, os três casais juntos e ela, como sempre, a embirrar com ele, doida de ciúmes, sempre à beira de atear um incêndio. Às tantas, o outro nosso amigo, farto de a aturar disse: ' Eh pá, grande pancada...' E virando-se para o marido dela, perguntou 'Éh pá, tu nunca pensaste em dar-lhe um sopapo..?.'. Brincava. Mas ela, muito séria, disse: 'Já deu. Volta e meia bate-me'. Ele quase se enfiou pelo chão abaixo. Mas ela continuou, como se dissesse a coisa mais normal do mundo: 'Mas eu não me fico e dou-lhe também'.

Ficámos perplexos, incomodados.

Os anos iam passando e sempre isto. Já os nossos filhos crescidinhos, tinha eu uma senhora que ia buscá-los à escola e, enquanto nós não chegávamos, limpava a casa. Por essa altura, andava ela à procura de uma empregada a tempo inteiro. A filha da que cá trabalhava, com o ensino secundário completo, andava à procura de emprego. Falei-lhes na possibilidade. Gostaram-se e para lá foi a rapariga trabalhar.

Ganhava bem e o trabalho não era puxado até porque a minha amiga, médica bastante ocupada e zero de apetênia pelas coisas da casa, também não exigia o que quer que fosse. E gostava imenso da ama que tinha arranjado para a filha. Delegava nela toda a responsabilidade -- da casa, da filha, das compras, das decisões domésticas de qualquer tipo -- e confiava na sua competência a 100%.

A questão era aquilo a que a rapariga assistia. Dizia que cenas de violência insuportáveis, que a senhora tinha tamanha paixão pelo marido e tantos ciúmes que o levava à loucura, que temia pelo que poderia acontecer. A mãe contava-me assustada: 'Aquilo ainda acaba mal. Pancadaria de morte, tanto da parte dela como da dele. A minha filha tem medo. Diz que não aguenta'.

Demitiu-se.

Algum tempo depois, separaram-se. Arrasados. 

Continuámos a dar-nos com ele.

Ela afastou-se. Entrou numa vida que soubémos envolver alguns excessos. Aparentemente queria fazer ciúmes ao ex-marido. Manteve-se uma médica exemplar e a mesma bela mulher.

Ele andou de namorada em namorada. Cheguei a um ponto que nunca sabia se era nova ou se já me tinha sido apresentada.

A filha tornou-se punk. A última vez que a vi tinha cabelo encarnado, uma trança fininha descendo dos lados da cabeça, saia comprida, aspecto estranho. Não nos reconheceu.

Mas isto tudo para chegar ao ponto de partida: em casos assim, podemos acusar o homem de violência? Ou melhor: podemos acusá-lo só a ele? Ou, antes, é toda a relação que é doentia, tresloucada? 

A vida das pessoas por vezes encerra sementes de destruição e a leitura que se faz dos acontecimentos deve ter isso em consideração.

E, claro está -- e como penso que dá para perceber -- este é um tema que me incomoda bastante pois se há situação em que é impossível encontrar o lado dos bons e dos maus ou encontrar culpados, esta é, seguramente, uma delas. É, à partida, uma equação impossível. 

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Sylvia Plath lê Ariel


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Transcrevo de um dos artigos aquilo que me parece descrever bem a situação vivida pelo casal:

The writing of both poets overflows with violent images, of which letter-burning is probably the most innocuous example. Both she and Hughes were scenery-chewers, people who saw themselves as larger than life.
Plath mythologised marriage and procreation as the source of her inspiration; Hughes concurred, and claimed the primal urges of hunting and art were at one. The legend, in other words, was produced by Plath and Hughes themselves, and violence was at its heart, a violence that was never merely symbolic. Her death made that all too clear.
Everything ended in a rage, and in the determination of tragedy. Anger – as it tends to – left everyone polarised. Love was thwarted, and perverted; sorrow was appropriated and refashioned; their story was used to act out a cultural drama which was only partly about the battle of the sexes. It was also about our desire to know, a desire that writers always invoke and then frustrate. In Burning the Letters Plath warned: “Only they have nothing to say to anybody. I have seen to that.” How symbolic can we get.
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Já agora:

Sylvia com  Gwyneth Paltrow e Daniel Craig



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Até já.

1 comentário:

bea disse...

O filme deve ser interessante. Vou procurar. Mas é como diz, há pessoas talhadas para a confusão. O problema não lhes vem do exterior, está nelas. E os sentimentos sofrem o mesmo desregulamento. Em filme, é incentivo, provoca interesse. Embora a gente pense que é passível de acontecer, aquilo é ficção. Na vida real deve ser um inferno viver com alguém assim.No caso de Sylvia Plath e Ted Hughes, foi em dobro. O que nos faz supor a catástrofe anunciada. Não condeno nenhum. Do que li, ele parece-me mais estável. Mas ainda falta ver o filme.