terça-feira, abril 18, 2017

Salve Maryam





Sabem já de mim alguma coisa. Sabem que não me acho importante. Um ser efémero na longa cadeia que vai habitando o planeta - nada mais que isso eu me acho.

Hoje ao cair da noite, um dos meninos, o de de quatro anos, apanhou uma flor e ofereceu-ma. Coloquei-a no meu cabelo. Nem mais me lembrei dela. O meu marido é que, ao chegarmos a casa, disse: 'sabes que tens uma flor no cabelo?'

Quando entrei em casa, vi-me ao espelho. Gostei de a ver ali. Bonita a flor. Estive a vê-la. Perfeita na sua elegante simetria, no seu suave colorido, na delicadeza do desenho das suas pétalas. Pensei: vale mais, para mim, olhar esta flor do que, para alguns, ler os clássicos de frente para trás e de trás para a frente.

São opções de vida ou é genético -- não sei. Inclino-me para a genética, uma coisa como a orientação sexual. Não escolhi ser hetero tal como não escolhi ter tal devoção pela natureza e pela simplicidade.
A verdade é que me custa suportar gente cheia de si própria, narcisos que se deslumbram com o seu próprio conhecimento, gente que mostra arrogância e superioridade perante aqueles que não leram os mesmos livros ou não ouviram as mesmas músicas, gente que impõe conceitos e pontos de vista sem cuidar de saber que, para alguns outros, a vida é mais, mil vezes mais do que mil teorias, mil estratificações do conhecimento, mil dogmas.
Coitado de quem um dia tenha a infelicidade de se alhear da simplicidade ou de se fechar no seu mundo de mil labirintos sem se lembrar de sentir o prazer de ver a luz brilhando na pele de quem se ama ou de sentir a emoção de um olhar humedecido ou de procurar o afecto de quem da vida procura a bondade, a ternura, a suavidade dos bons momentos.  
Coitado, digo eu, mas digo com pouca convicção. Que seja feliz aquele para quem a sua imagem ao espelho é bastante -- e com as formas de buscar a felicidade que cada um saiba de si, sem julgar os outros.
Mas eu sou assim, como têm aqui visto.

Cultivo a ignorância* com o desvelo que outros colocam no estudo aturado do que quer que seja. Tento manter-me um campo em branco, aquilo que em gestão se designa por greenfield, onde mil sementes consigam sempre encontrar espaço para germinar. Tento que a minha passagem pela vida seja um doce passeio em que eu, em estado de inocente desconhecimento, consiga sempre encantar-me com o que vou descobrindo, sem cuidar de saber em que movimento ou linha de pensamento se integra aquilo que me traz maravilhamento. Com sorte, não se integrará em nenhum compartimento.


E eu estou maravilhada com Emahoy Tsegué-Maryam Guèbrou, a freira etíope de 93 anos (vídeo lá em cima) que compõe e interpreta ao piano as suas obras. 


Tenho passado a noite a ouvi-la e estou em estado de encantamento como se tivesse acabado de presenciar um prodígio.

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* Quando me refiro a cultivar a ignorância tal não deve, claro, ser lido no sentido literal. Não me refiro à ignorância levezinha, banal, ao alcance de todos. Refiro-me, sim, àquela forma de desconhecimento que vem da libertação de taxonomias, da tentativa de desagrilhoamento de peias limitativas do pensamento, da desnecessidade de saber tudo o que há para saber para conseguir formular uma ideia que nos chega das entranhas. Refiro-me àquela forma de estar de quem está sempre disponível para aprender mais, para compreender e aceitar os outros, para se encantar com os pequenos ensinamentos e descobertas que a vida nos vai proporcionando.

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Um dia feliz a todos

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[E caso queiram saber o que eu gostava que fizessem ao meu carro, é fazerem o favor de descer até ao post que se segue]

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