quarta-feira, abril 26, 2017

Desenha-me





Desenha-me. Olha para mim e vê o que se esconde debaixo da minha pele. Olha os meus olhos. Vê se há lagos dentro de mim. Se os descobrires, percorre as minhas margens, mergulha nas minhas águas. Olha o vagar com que as minhas pálpebras se movem, as pestanas. Olha-as. São, talvez, ramos que as árvores que se debruçam nas margens entregam para que as encontres, os meus braços chamando por ti. Olha para mim de outra maneira. Cobre-me de verde. Vê se há em mim montanhas imensas, mistérios silenciosos, o aconchego dos leopardos, varandins, mares, lonjuras, horizontes só teus. Espreita bem. Descobre-me.

Desenha-me. A minha boca. Olha bem para ela. Passa os teus dedos devagar nos meus lábios. Sente a pele, sente a macieza vermelha e húmida que se esconde do olhar esperando que os teus dedos ou os teus lábios ou a tua língua a procurem. Olha como os meus lábios se abrem com o riso, como se mordem com a impaciência da espera. Sente o meu sabor.

Desenha-me. Afasta o cabelo da minha testa, olha-me bem. Afasta o cabelo do meu pescoço. Observa a curva da nuca. Vê como o sol se refecte na minha pele. Aproxima-te. Vê a tua sombra em mim. Olha como deixo que te aproximes. Toca a minha pele. Passa a tua mão pelo meu braço, pelas minhas costas, pelos meus seios, pela curva do meu ventre. Baixa-te. Espreita-me. 

Desenha-me. Fala devagar palavras que venham de dentro de ti, inventa palavras para mim. Olha-me nos olhos, toca-me, cobre-me com a música do teu olhar, cobre-me com a doce toada das tuas palavras. Olha como fecho os meus olhos para melhor sentir a tua presença. Chega-te a mim. Cheira-me. Diz que cheiro a erva fresca, a laranjas, à aragem que faz dançar os pinheiros, ao fundo do mar. Cobre-me com o perfume das flores, com o canto dos pássaros, com o calor do teu corpo.

Desenha-me. Diz-me que sabes de mim o que eu não sei, inventa-me, pinta-me de azul ou de mar ou de cor de fogo e depois deixa que a luz da tarde tinja os meus cabelos, deixa que se saiba que arde em mim a chama da saudade, ah como me arde esta saudade, deixa que as palavras voem em volta de mim e da tua mão que me pinta, deixa à vista de todos o pássaro inventado que em mim canta e grita e, como um louco, ri sem parar, deixa à vista o meu coração que não sabe esconder-se ou parar de sonhar. Diz-me. Diz-me devagar o que sabes de mim, diz-me devagar que me queres.

Diz-me. Conta-me como me vês. Desenha-me. Com cores. Apenas com traços. Apenas com palavras.

Ou não.

Deixa. Não digas nada. Não faças nada. Não me desenhes.
(Eu já sei como me vês).

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É assim

Tilda Swinton diz 'Like This' de 'The Essential Rumi' 


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Hung in Time: John Berger desenha Tilda Swinton



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As imagens mostram trabalhos respectivamente de John William Waterhouse e Leonardo da Vinci

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E aceitem o meu convite e queiram continuar a descer

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6 comentários:

Anónimo disse...

Desenhar tal ser?
Missão impossível.
Bem, quase impossível.
Como desenhar metade do ser humano,
de forma inteira?
JB

bea disse...

E de onde tirou a senhora este "desenha-me"?

Um Jeito Manso disse...

Olá JB, boa noite,

Quem vê, vê metade. Mas sendo quem vê um bom conhecedor da pessoa inteita deverá ser capaz de transmitir tudo o que sabe da pessoa. E não apenas vê a metade da pessoa que está virada para ele como vê a parte de fora. E a parte de dentro. Por isso, não é qualquer um que pode desenhar outro.

Agora, enquanto escrevo, penso no retrato de Mário Soares feito pelo Júlio Pomar. Acho extraordinário. Está ali o Mário Soares inteiro.

Nao sei se sabe a que me refiro: http://www.museu.presidencia.pt/expo_detail.php?ID=92

E obrigada pelo seu interessante comentário.

E uma noite descansada e uma bela quinta-feira, JB.

Um Jeito Manso disse...

Olá Madame bea,

Pois aqui a senhora dona tirou este 'desenha-me' sabe lá ela de onde. Tinha estado a ver a Tilda, a deixar-se ver e desenhar pelo John Berger, e depois ouvi-a a dizer o 'like this' e, então, comecei a escrever e saíu aquilo. Espero que, apesar de não se saber se aquilo saíu da cabeça, se do coração se, simplesmente, das mãos, a Mestre Bea aprove o exercício.

E uma noite boa para si e uma quinta-feira feliz.

bea disse...

Mau Maria. Não sou mestre de coisa nenhuma. Só que achei este texto bem diferente dos outros. É só. E muito bonito mesmo. Peço desculpa, mas, sem ofensa, até pensei que fosse de algum escritor, poeta, coisa assim. Se me conhecesse, de certeza não me chamava madame. Mas pronto, não conhece. Portanto, descontei. Só por esta vez. Ou vou pensar em vir para aqui fazer um escarcéu por escrito que não sei muito bem como é, mas talvez uma abundância de vogais abertas que é para o barulho ser forte.

Um Jeito Manso disse...

E o que eu gosto de ler as suas refilices Mademoiselle bea... Gosto mesmo, pode crer.

E fico contente que tenha achado tal coisa do meu textinho escrito já meio a dormir. Às vezes acho que é quando eles me saem melhor, quando me apanham distraída, parece que as palavras seguem o seu caminho sozinhas. Nem sei se têm nexo ou se vêm a propósito mas elas lá se arrimam.

Gracias!