terça-feira, março 21, 2017

Felicidade.
[Ou o desperdício que é não ser feliz]





Perante a mesma situação as pessoas reagem de maneiras muito distintas, tantas que se diria estarem a viver situações igualmente distintas.

Três casos ao acaso.

Trabalhou comigo uma pessoa que, profissionalmente, vivia num tormento. Sempre soterrado debaixo das preocupações, sempre a sentir que vivia situações limite, sempre na iminência de se ver por dentro de uma tragédia. Ficava a trabalhar até tarde, quase não conseguia gozar férias. Quando se combinava um lanche a meio da tarde ou qualquer outro momento de convívio, ele nunca conseguia comparecer pois o trabalho e as urgências a tal o impediam. 

Se calhava encontrar algum conhecimento mútuo, diziam-me: ‘então, já sei, as coisas por lá estão complicadas…’. Se eu mostrava espanto, que ideia, que não, problemazecos como sempre os há, nada de mais, logo me esclareciam que tinha sido fulano de tal, muito em baixo, stressadíssimo, que tinha falado nos seus múltiplos problemas. No entanto, era só ele que via tanto drama. Não me lembro de o ver feliz.


Lembro-me de um outro. Era responsável por uma área da empresa que ele conduzia com o desvelo com que se cuida de um jardim. Tudo num brinquinho. Ali nunca nada falhava. Era muito exigente mas era o primeiro a dar o exemplo. Nunca o vi despreocupado ou feliz. Parecia sempre vencido pelo dever. Entretanto, a empresa passou por uma das várias disrupções normais nos grandes grupos. Na sequência de um processo de aquisições e fusões, ele deixou de ser o responsável pela área, passou a adjunto. Para ele esse processo foi muito doloroso. Nunca conseguiu imaginar que aquela área deixasse de ser ‘sua’. Fisicamente, estou a falar de um homem forte, estômago proeminente, rosto avermelhado. Por essa altura, ele começou a andar numa pilha de nervos. Por vezes, temíamos que explodisse. Ou implodisse. O  estado era vulcânico. 

No entanto, o que lhe aconteceu a ele aconteceu a metade dos responsáveis. De repente, ao juntarem-se duas empresas, sobrava um director de cada. Passei por isso. Como na altura eu acumulava duas áreas, perdi uma mas devo dizer que também me custou pois perdi justamente aquela de que mais gostava. Contudo, nestes processos, o que conta não é apenas o mérito até porque os novos accionistas e respectivos representantes conhecem bem é os do seu lado, não os do outro acionista. Portanto, é frequente que fiquem os directores da confiança do administrador que tem o pelouro. Aos que sobram, são arranjados outros lugares ou, querendo as pessoas sair, facilita-se a saída. Para toda a gente estes períodos são sempre conturbados e nem todos os encaram com tranquilidade. Mas ultrapassa-se, que remédio. A vida continua e não serve de rada ficar agarrado ao passado, a carpir a injustiça da decisão ou o que for. Mas este meu colega sofreu especialmente com a situação. Ele achava que o novo responsável era pouco cuidadoso, que estava a estragar o espírito de rigor que antes imperava. Assisti a discussões inacreditáveis. Perdia a cabeça, ficava possesso. O seu rosto ficava, então, verdadeiramente a ponto de rebentar, quase cor de vinho, e os olhos quase desorbitavam. As outras pessoas assistiam perplexas. Até as que antes dependam dele ficavam atónitas. Uma vez, depois de lhe ter ouvido gritos e mais gritos, encontrei-o no corredor. Já seriam umas oito da noite. Perguntei-lhe o que se passava. Quase tremia de fúria e impotência: que tanto cuidado que ele antes sempre tinha para agora ser tudo feito em cima do joelho, que, para que o resto da empresa não se apercebesse do regabofe que por ali aí, começava ele a trabalhar às sete da manhã mas que ninguém lhe agradecia, ninguém queria saber da opinião dele que, na altura de receber os louros, eram os outros que os recebiam. E quase espumava ao dizer isto. Pensei, assustada: credo, qualquer dia dá-lha alguma coisa. 


Tranquilizei-o: que, do que eu sabia, tudo estava a andar bem, que nada podia ser tão grave, que não andasse ele a dar cabo da saúde, e que deixasse de ir fazer trabalho oculto ao princípio da manhã pois, se havia problemas, ele estava a ocultá-los e, assim, ninguém os resolvia, mas que se tranquilizasse, que não trabalhasse tanto. Nem me ouviu. Perguntei-lhe se andava a vigiar a tensão arteral. Que sim, que andava altíssima, e como não?, a ter que aturar todos os dias aquele incompetente? 

No dia seguinte procurei o novo director. Era muito diferente dele mas notoriamente competente. Antes falei com os antigos subordinados. Estava toda a gente serena, não havia ali stress, o trabalho parecia correr sobre rodas. Quando falei com o chefe dele, tendo o cuidado de não relatar as enormidades que tinha ouvido, o chefe mostrou-se preocupado, que não sabia como lidar com ele, que em qualquer coisa via um problema de vida ou morte, que perdia a cabeça por ninharias, que se estava a afastar cada vez mais dos seus antigos subordinados a quem olhava, agora, quase como ‘vendidos’. Fiquei ainda mais preocupada com ele. Pensei mesmo que ele estava a dar cabo da vida e, ainda por cima, sem qualquer motivo para isso. Ou melhor, motivos de descontentamento sempre os encontramos. Mas, onde uns seguem em frente, outros afundam-se neles -- e era o caso dele. 

Mais tarde, não sei se meses ou um ano, já eu não trabalhava lá, parei uma vez numa estação de serviço. Estava na fila para pagar quando ouço o meu nome. Olhei para trás e não conheci ninguém. A voz era a dele mas não era ele. Era um homem muito magro, a roupa larga, o rosto branco. Fiquei para morrer. Tão abismal era a diferença que não fui capaz de dizer uma palavra sobre a súbita magreza. 

Perturbada, comentei, mais tarde, o encontro com um colega. Perguntou-me: ‘Então não sabe?! Está muito mal. Já nem deve durar muito. Quando se descobriu, já era tarde demais. Continua na mesma luta, a aparecer na empresa às sete da manhã, sempre a mesma labuta, vai morrer debaixo desta dupla agonia, doente e sentindo-se incompreendido, desprezado. Toda a gente lhe diz que descanse, que não se enerve, mas é mais forte que ele.’ 

Morreu pouco depois. A empresa continuou a funcionar normalmente. E eu, volta e meia, penso com tristeza no absurdo que foi aquilo: pelos vistos já estava bem doente sem o saber e naquela luta insana, e, mesmo depois de saber que estava a caminho do fim, continuou a desperdiçar, um a um, cada minuto da sua vida. 


E um outro. De todos já aqui falei antes. Também foi meu colega e, ao contrário dos restantes colegas dessa altura que era tudo boa onda, achava-se o melhor de todos. Via defeitos em tudo o que os outros faziam, e dava como exemplo o que ele fazia. Ele era o mais exigente, o mais justo, o mais avançado, o mais rigoroso, o mais tudo. Segundo ele, nós éramos os patetas alegres, os facilitistas, os que, por falta de ambição, não haveríamos de tirar o pé da lama nem de levar a empresa a lado nenhum. As pegas que tive com ele foram incontáveis. Naquela sua ânsia de conseguir economias, não se ensaiava nada de fazer cortes cegos, passando por cima de quem lhe fizesse frente. Assisti à forma desabrida como tratava as pessoas, vi a forma como massacrou alguns que se puseram a jeito até que uma vez o avisei, à frente de outras pessoas, de que, à minha frente, não voltaria a tratar assim quem quer que fosse pois, se o fizesse, estivesse ele seguro de que me levantaria da mesa e me demarcaria publicamente da forma quase selvática como queria atingir os seus propósitos. Para minha pouca sorte, numa das múltiplas reestruturações pelas quais já passei ao longo da minha vida profissional, na sequência de umas quantas demissões, eis que ele, falcão exemplar, é repescado para a administração e eu, entre outros directores, ficamos a depender dele. Foi dos períodos complicados da minha vida. Ele via-se como sempre se tinha visto: o maior, o melhor, e eu era aquela que a levava na boazinha, amiga da classe operária, defensora dos desvalidos. Guerras que só visto. Queria educar-me. Ora com quem ele se foi meter. Também destratou outros colegas meus mas os homens têm um medo intrínseco: o de que, se avançarem, podem, na sequência disso, ter que partir para o passo seguinte que, na opinião deles, só pode ser um de dois: ou ir às trombas ao outro ou demitirem-se. Portanto, por via das dúvidas, geralmente engolem em seco. Eu não. Vocês já sabem alguma coisa de mim. Dificilmente me fico, especialmente se achar que o outro não tem razão. Portanto, era taco a taco. Quando ele, num dia de guerra a sério, me sugeriu que eu me demitisse, respondi-lhe que não o faria e que o mais provável é que fosse ele a ir ao ar antes de mim. 

Talvez por ser público que aquilo entre nós não ia a lado nenhum, houve nova reatribuição de pelouros e deixei de trabalhar com ele. Aí, estranhamente, reaproximou-se, mudou, e ficámos a dar-nos até bem. Mas continuou a infernizar a vida aos outros. Pouco depois, nova reviravolta e a administração foi destituída. Acabou mesmo por ‘ir ao ar’, ele. Andou um bocado aos papéis mas, por ser pessoa válida, logo foi administrar outra empresa, felizmente longe de mim. Aí voltou a usar a sua filosofia de vida, de que quase todos os outros eram uns relapsos, uns improdutivos, que ele é que era bom, inteligente e sensato. Inventou maneiras para controlar a produtividade das pessoas, arranjou maneiras de introduzir novos métodos nem sei de quê. Como sempre, estava ele de um lado, ele o bom, o eficiente, o exemplar e do outro lado da barricada o resto do mundo. Os inimigos não se lhe fizeram esperar e tenho ideia de que alguns lhe moveram, mesmo, processos.


Pessoalmente era pessoa civilizada, embora parecendo sempre 'em serviço', como se não pudesse dar-se ao luxo de ser feliz, tantas as ralações. Conheci-lhe a mulher que era bastante querida. Presumo que ele a tenha educado tal como educou os filhos, tal como tentava educar toda a gente à sua volta. 

Um dia, um outro colega ligou-me. Não tinha eu sabido? Eu, que não. Pelas notícias? Eu, não. Agressão violenta à porta de casa, ninguém sabia quem é que o tinha agredido daquela forma, coisa muita feia, e ele em coma, dificilmente escaparia. Ficamos todos em estado de choque. Meses de coma. Escapou mas, claro, não voltou a ser a mesma pessoa. Não sei se ele tem memória de como desperdiçou a vida enquanto tinha qualidade de vida. Pensará algumas vezes no absurdo que tinha sido aquilo de tentar educar toda a gente, achando-se melhor que todos? Naquele afã, nunca lhe vi vestígios de felicidade.

Três exemplos. Podia dar mais uma mão cheia deles. Pessoas que, vá lá saber-se porquê, parece que não percebem que estão a desperdiçar a vida. 

A sensação que tenho é que que se esquecem da sua natureza animal. Parece que acham que vieram a este mundo com uma missão. Ou parece que se esquecem que é da natureza animal arranjar saída para as dificuldades que aparecem. E que se vive para viver e para mais nada. E que de nada servirá estar vivo se for para andar a fazer-se de morto. Tem que ir à caça e não tem cão? Pois cace com gato. Era apaixonada pelo maridão e o maridão cansou-se de tanto amor? Pois azarinho -- e o que não falta são outros homens (e, ainda por cima, estão sempre a nascer, como me disso no outro dia uma que ficou viúva). Ficou sem trabalho? É horrível mas há que dar a volta, fazer outra coisa, outra coisa qualquer. Teve que se desfazer da casa? Pois é, uma grande desgraça, mas que se procure outra mais pequena, mais longe, mais barata -- e melhores dias virão. Está doente? Então força, isso há-de passar, e haja descanso, afecto, pensamento positivo e, sobretudo, vontade de seguir em frente porque para a frente é que é caminho. E não é nada de muito dramático mas não tem dinheiro para cinemas, restaurantes? É pena mas passear à beira-rio ou no parque não custa dinheiro, ir a uma biblioteca não custa dinheiro, ir ouvir música de rua não custa dinheiro e pode apanhar-se sol e ver outras pessoas. 

O que é a felicidade? 

Para mim é isto. É ir em frente, é procurar estar bem, é aceitar o que acontece e, se não for bom, tentar dar a volta por cima, é ir à luta, é encarar a vida com optimismo, é gostar de dar e receber, é não consumir energias a maçar os outros, é gostar de rir, é procurar o riso, é dar valor às pequenas coisas, é gostar do que se tem, é gostar de estar vivo. Não é nada de especial -- mas é bom.


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Lá em cima é uma menina de 14 anos, sem braços, abandonada pelos pais, a cantar e a tocar piano no Got Talent da Roménia neste domingo. Parece feliz.

As fotografias foram feitas no Ginjal, lugar que tem o condão de pôr sempre ainda mais feliz.

E agora vou espreitar uma biografia de Stephen Hawking que é outro que tal, sempre com ar de quem a sabe levar na boa.

Se alguma coisa ali me cair no goto, conto-vos.

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