segunda-feira, fevereiro 20, 2017

O grande mestre do acaso gosta de me provocar.
Ai gosta, gosta.




Dia dedicado ao mar e à tranquilidade. A casa para ser tratada, tarefas múltiplas de fim de semana. Mas, sempre, os passos que querem ser dados junto à força das águas ou por entre o azul de um céu aberto, por entre gaivotas, espumas, cores que se diluem junto às rochas onde o mar se embravece.

Caminho e, encantada, fotografo a favor e contra a luz, ao perto e ao longe, como se quisesse guardar para alguém o que os meus olhos vêem.


De longe, as pessoas perdem relevância, são apenas pequenas figurinhas cuja negra silhueta se recorta contra um imenso mar de luz. A vida humana é assim mesmo: frágil, breve, irrelevante face a uma natureza que se transforma a cada instante, renascendo sempre em pleno fulgor.

Depois os caminhos foram outros. As artes da pesca. Armadilhas de rede, coloridas, quase brinquedos feitos de leveza: uma geometria com cheiro a maresia.


Mais acima, um espaço irreal. Uma árvore florescia e junto a ela um casal. O tronco com uma cor em que não é possível acreditar: carmim. As muralhas e o silêncio e as flores e a elegância dos ramos: tudo de uma serenidade oriental, uma paz que antecipa uma primavera prenhe de vida. Olho-a de vários ângulos. Linda.

Mais à frente, nas paredes brancas, uma pintura também em tom rosa. Em breve, aquelas árvores também estarão verdes. O sol ali também se aquieta. Na esplanada parece que o tempo parou. Quem está ou passa, fá-lo em sossego.


E, depois, os livros. De entre tantos possíveis -- e lá voltarei um dia e, nessa altura, do assunto falarei -- trouxe seis. Circulando por entre mesas, estantes, caixotes, troncos escavados, fui escolhendo. Ao acaso. 

Cheguei a casa. Fui-me aos deveres, cumpri com eles. Ao fim da tarde, quase tudo tratado.

Já anoitando, deliciei-me logo com um dos livros. Tão bonito, todo ele. O culto do chá, Venceslau de Moraes, illustrações de Yoshiaki, Typographia do 'Kobe Herald', Gravuras de Gotô Seikôdô, 1905. Um livro que, segundo o autor, é exótico pela forma, exótico pelo texto. Um livro de uma graciosidade nas palavras, na delicadeza das imagens. 

Ia lendo e passando a mão pela suavidade das páginas, sorrindo com a escrita, agradada por o ter descoberto e trazido comigo.
Mais do que isto: a alma das coisas, o que de inexplicavel e de subtil parece emanar de um conjuncto qualquer onde os olhos se poisem, -- tranquilidade das sombras, arrogancia de um tronco, ternura das relvas... -- devia ressaltar suggestivamente do jardineiro japonez, imprimir-lhe um caracter, uma philosophia, acordando na mentalidade dos visitantes um sentimento de paz, de triumpho, de saudade...
E eu, lendo estas palavras, tinha presente os lugares por onde tinha andado, as fotografias que tinha feito, aquele recanto tão japonês, aquela árvore tão bela. Pareceu-me uma coincidência virtuosa. Agradei-me com isto. 


Procurei a última página, como geralmente faço. Uma lenda com um fim tão triste.
Quando, ao romper do dia, as moças de Uji seguiam para a apanha do chá, em ranchos galhofeiros, quedaram-se de repente junto ao rio, cheias de espanto, de pavor, vendo a boiar dois corpos detidos na maranha dos juncos, rígidos, lívidos, mortos, porem sorrindo ainda e dando-se ainda as mãos...

Fui, então, preparar uma infusão. Erva-príncipe misturada com lúcia-lima. Com a chávena nas mãos, aspirando o suave aroma, peguei, então, num dos outros livros. Um diário. 'Na água do tempo', Luísa Dacosta. Fui-me, de novo, à última página. E foi com perplexidade que a li. 
Resiste-se à vida, ao desgaste do tempo, à morte do corpo, ao apagar das alegrias, ao vazio circundante, ao corte das raízes, à não publicação dos sonhos a morrer na gaveta, porquê? Talvez pelo bafo humano dos leitores, que não esquecem, que se dão ao trabalho de escrever a lamentar o silêncio e a não publicação. E que, numa gentileza inesperada, mandam presentes. Hoje, dia sem data e igual, recebi O Culto do Chá de Venceslau de Moares, numa edição fac-similada que reproduz a de 1933. E a tão gentil lembrança e as folhas do livro, à medida que as passava, , traziam-me de volta a minha ardente adolescência, quando empoleirada na japoneira do quintal me embalava a mitos -- alguns do Dai-Nippon, que tanto me acompanhou. 
Hoje a angústia de ser sozinha e marginal afogou-se na corrente do rio Uji e bóia, ofélica, como o corpo dos amantes ainda de mãos entrelaçadas e presos nos juncos daquelas águas sagradas, que 'lavam todos os males do coração'

Fechei o livro. Pousei-o ao lado do outro -- não sei se intrigada, se emocionada. Nem fui capaz de comentar. Guardei para mim como um segredo, um mistério do outro mundo. Entre tantos e tantos livros, logo fui escolher livros em cujas páginas haveria de ler palavras que descreviam o que eu tinha visto durante o dia e, inclusivamente, onde, num deles, se falava de outro.

Há tantas coisas na minha vida que não compreendo, tantas coisas tão misteriosas. Tantas.

Nunca fico a matutar nelas; fico como que agradecida, como se alguém gostasse de me pregar partidas -- e eu gosto de brincar.

Agora a questão é esta: quem é? Quem é que assim gosta de brincar comigo? O acaso? Um brincalhão que anda por aí a jogar aos dados e que gosta de se meter com quem tem a mania de se armar em racional?

Não sei. 

Seja como for, por hoje não vou ler mais nada do que trouxe. Mais coincidências destas deixar-me-iam à beira de pôr de lado a minha racionalidade tão assente na prática silogística.
Mas apetece-me rir.
Apetece-me que o grande mestre do acaso saiba que as suas brincadeiras me encantam.
 ......

Terirem. Terirem. Oh deus incompreensível. Terirem. Terirem.

.....

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