quarta-feira, novembro 16, 2016

Terra de ninguém





Olho o céu em busca de uma lua muito branca. Não a encontro. Mudou de rua. Espreito o rio. Dorme envolto em escuridão.

Enquanto há luz ando alheada da espuma dos dias e é à noite que espreito o mundo. A televisão cheia de figuras estranhas. Num lado aparece-me uma família que parece despejada de uma série de televisão, um parvalhão com uma mulher-bomba ao lado e um bando de filhos banhados a estupidez e a ouro. Parece que vão mandar no mundo. De outro, aparecem umas imagens de um túnel onde uns anormais discutem à saída da casa de banho. Num outro, aparece um bando de doentes (mentais, presumo) a discutirem as imagens de uns ou de outros.


Desisto. Isto não é para mim.

Há pouco, sabendo-se dos bons resultados da economia portuguesa, aparece-me um pobre coitado roído de mau perder a dizer umas baboseiras de uma indigência que dá pena. Não consigo suportar. 

Volto-me para os jornais online. Nada.


Tenho a caixa de correio cheia e tanta a canseira que não consigo abri-la. Fica para outro dia. Nem consigo responder aos comentários. Preguiça, falta de energia. 

Revistas e magazines, talvez.

Que nada. Banalidades, futilidades. No meio de uma, encontrei um artigo sobre um tema oco e do qual tive conhecimento num dos vários cursos bizarros que ao longo da minha vida tenho frequentado. Um psicólogo ensinou-nos a gerir melhor os nossos pensamentos. Fez com que praticássemos. Os outros colegas de curso entusiasmaram-se, muito útil, disseram. Eu achei uma treta própria para crianças com algum défice cognitivo. Se calhar julgo que sou uma optimista e sou mas é uma céptica. Era para falar nisso aqui, explicar a técnica, exemplificar, depois desmontar. Encontra-se disso em revistas de alto gabarito, há livros, há vídeos, palestras. E eu acho uma treta sem qualquer valia. Penso nestas vacuidades e dá-me logo aquela vontade que tantas vezes me assola: ingressar num convento, daqueles em que as monjas fazem voto de silêncio e andam descalças. Gosto tanto de andar descalça. E a falta que o silêncio me faz quando penso na tralha fonética que me atenta o juízo. Não dá para acreditar o quanto sabem as gentes que ao longo da vida me têm rodeado. Sabem tudo. Gente muito à frente. Um jargão completamente executivo e terminologia importada directamente das majors da consultoria. E depois, no meio de tanta sapiência, em salas ricamente atapetadas, esbeltamente envidraçadas sobre uma Lisboa iluminada, todos dizem quaisqueres -- e eu dou por mim a pensar: se eu disser quaisquer vão achar que eu, para além do problema de ter um coração que bate a gauche, ainda, por cima, não sei falar. 

Mas então, dizia eu que. Que. Que. Que...?
Já não me lembro. 
Ah, sim, já sei, que me estou nas tintas para as coisas parvas.


Para ver se despertava e me animava com alguma coisa de jeito, estive a ver se tinha paciência para ler um bocado da Bíblia, o Novo Testamento, aquele livro recente, uma tradução do grego pelo Frederico Lourenço. Outra irritação. Faz-me lembrar o outro do mail de ainda há bocado. Uma pessoa quer uma resposta simples e recebe de volta links, print screens não sei de onde e, para obter um esclarecimento de nada, vê-se forçada a andar por ali à pesca a ver se descobre o que interessa. Não há pachorra. Mas isto deve ser coisa minha. Deve ser da minha impaciência. Não digo que não. Mas uma pessoa pega na Bíblia e em vez de ser livro em que se pegue bem, com folhas em papel de Bíblia, levezinho, fácil de pegar, não senhor, um calhamaço grande e pesadão. Não seria grave, isso. Mas o pior é que aquelas páginas não contêm a estética do silêncio que é coisa tão essencial. Metade das páginas são anotações. Uma dispersão que mais faz aquilo parecer um parque de diversões: este diz isto, aquele disse o outro. Uma seca. Não tenho paciência. Uma coisa é um livro de estudo, uma tese, trabalho de investigação, coisa para avaliadores encartados verem se o autor fez o trabalhinho de casa. Outra coisa, caraças, é a Bíblia. Já abri e fechei o livro não sei quantas vezes. Penso que estou a ser injusta e volto a dar uma hipótese. Fecho logo a seguir. Quero cá eu saber do que este, aquele e o outro escreveram ou disseram. Pego na Bíblia para a ler eu e para sentir o efeito que as palavras têm em mim. Agora se penduram numerozinhos e apontamentozinhos a cada passo, vou ali e já volto. Que falta de paciência.


Não sei que mais vos diga. Escolhi pinturas sobre o outono ou com cores de outono. O pintor é Genso Okuda. Gosto. São obras simples, elegantes, harmoniosas. E escolhi, para ir ouvindo enquanto estou nisto, a June Tabor que tem uma bela voz de outono.

Queria ter aqui um poema mas para isso teria que ir ali buscar um livro, copiar. Não dá. A esta hora não. Podia dizer uma receita de cozinha mas não sei, parece que o que faço também é tudo banal. Só se fossem aqueles rolinhos de massa filo com ricota, espinafres e tempero leve de alheira que, depois de virem do forno, podem ser pincelados ao de leve com mel e alecrim. Mas não sei, parece que culinária aqui fica meio deslocado.

Pronto, não digo mais nada. Vou dar a isto o título 'Terra de ninguém' porque assim me parece o mundo, à mercê de qualquer um. Em si, isso não seria mau. O problema é que parece que os malucos, cacafónicos, ruidosos e destrambelhados estão a levar a melhor sobre os outros.

E por hoje nada mais tenho a dizer.

Informo que abaixo há uma leitura com pinta. A voz é boa. O tema, lá está, não é que seja mau -- mas soa-me banal.
Dito assim parece que só gosto de excentricidades -- mas não. 
Ou melhor: não sei. 
Também não interessa.


E amanhã é outro dia.

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2 comentários:

bea disse...

Para já: hoje há sol. E a super-Lua passou. Mas, pelo menos, passou por nós. Foi presente divino que me fica no catálogo (isto porque não me parece que algum dia eu venha a dizer que tive uma epifania), a surpresa de um êxtase pequenino (rimou).

E só dizem quaisqueres? Não é mau. Se dizem há-des, piora.

Acho que não compro essa bíblia do Frederico Lourenço - ainda que goste bastante das traduções da Ilíada e da Odisseia. Já tenho a outra e nem sequer a leio muita vez. Mas também lhe digo, se um dia me apetecer estudar o livro, aí, não hesito, é mesmo o Frederico Lourenço que vou ler. Confio nele para destrinçar e destravar algumas interpretações.

Gostei das cores do Outono que escolheu. E já agora, não se acha um bocadinho para o desnudado na época que entra? Mas tem inegável pendor estético e contemplativo. Isso...

Um Jeito Manso disse...

Desnudada eu, bea? Nada. Pois nã vê que tenho capas que me agasalham? O decote é que ficou um bocado descaído mas isso é do corte que não prende bem. Mas não sinto frio, isso, por acaso, não. Sou do género encalorado.

Um dia feliz para si, bea!