segunda-feira, janeiro 04, 2016

Que consequências têm as nossas acções?






Numa história que contou a amigos, J. Robert Oppenheimer, conhecido como o pai da bomba atómica, foi enormemente influenciado por um exemplo semelhante de curiosidade perversa em Do Lado de Swam, de Proust. Oppenheimer decorou uma passagem em que Mademoiselle Vinteuil espicaça a amante a cuspir numa fotografia do seu falecido pai: "Talvez não tivesse pensado que o mal fosse um estado tão raro, tão extraordinário, tão alheio, para onde era tão repousante emigrar", escreve Proust sobre a Mademoiselle Vinteuil, "se tivesse sabido discernir em si, como em toda a gente, aquela indiferença aos sofrimentos que se causam e que, sejam quais forem os outros nomes que se lhe dê, é a forma terrível e permanente da crueldade."(...)

Oppenheimeimer já foi apelidado de versão moderna do herói romântico, que, como o Manfredo de Byron (mas não o de Dante), é incapaz de se arrepender dos seus pecados e se divide entre a ânsia de explorar o desconhecido proibido e o sentimento de culpa por tê-lo feito.(...)

Nos seus tempos de jovem solitário, Oppenheimer comportava-se de modo algo errático. Passava por períodos melancólicos em que se recusava a falar ou reconhecer a presença dos outros; noutros, parecia estranhamente eufórico, recitando longas passagens de literatura francesa e de textos sagrados do hinduísmo; às vezes, os amigos consideravam-no à beira da loucura.(...)

Por um lado, parecia perder-se frequentemente em abstracções, distanciar-se em silêncio; por outro lado, submetia-se sem remorsos à supervisão das autoridades militares, muito embora os serviços secretos suspeitassem de que ele era um espião comunista, por causa das suas opiniões liberais, e o tratassem com pouca consideração. Quando, depois da guerra, Oppenheimer pediu aos Estados Unidos e à União Soviética que partilhassem conhecimento tecnológico para evitar um embate nuclear, os dois inimigos viram nesta atitude conciliatórias razão suficiente para lhe chamar traidor.

A questão de como construir uma bomba atómica, essa descendente sobremaneira evoluída da primeira bombarda da época de Dantes, suscitava um problema não só teórico mas também de engenharia. Por causa do receio de que os alemães conseguissem desenvolver a bomba antes dos cientistas americanos, a construção de Los Alamos teve de ser rápida, embora faltasse resolver alguns problemas básicos de física: as estratégias de "acção à distância" tinham de ganhar forma antes de se formular completamente a pergunta sobre que acção seria essa. Quando o general-de-brigada Leslie Groves escolheu Oppenheimer para o cargo de director do laboratório de Los Alamos, o que o impressionou mais foi que o cientista percebia, muito melhor do que os colegas, os aspectos práticos do problema de como passar da teoria abstracta à construção concreta.

A situação mudou a 7 de Maio de 1945, quando a Alemanha se rendeu, terminando assim a ameaça do ataque nuclear. Em Julho, começou a circular uma petição entre os colegas de Oppenheimer, pedindo ao governo que não usasse a bomba "a não ser que os termos impostos ao Japão fossem divulgados em pormenor ao público, e o Japão, sabendo desses termos, recusasse render-se." Oppenheimer não foi um dos 70 signatários da petição de 17 de Julho.

No dia anterior, 16 de Julho, a bomba foi testada num local a que Oppenheimer chamara Trindade. Quando viu os efeitos da explosão controlada atrás da barreira de protecção, Oppenheimer deve ter parecido Dante atrás do bloco a observar a actividade dos demónios quando a primeira bomba atómica explodiu e libertou a famosa nuvem em forma de cogumelo, lembrou-se de um verso da Bhagavad Gita, quando o deus Vishnu tenta convencer o príncipe mortal a cumprir o seu dever e lhe diz: "Agora sou a Morte, a destruidora de mundos."

Depois do teste bem sucedido, quatro cidades japonesas foram escolhidas como alvos de bombardeamento: Hiroxima, Kokura, Niigata e Nagasáqui. Só poucos dias antes do ataque é que a decisão foi tomada: como era a única que não tinha um campo de prisioneiros aliados, a escolha recaíu sobre Hiroxima. (...)

A dicotomia que tanto impressionara Oppenheimer na passagem de Proust transparecia na sua própria vida. Por um lado, reverenciava a procura científica com a curiosidade inteligente que o levava a questionar os mecanismos íntimos do universo; por outro lado, enfrentava as consequências dessa curiosidade, tanto na vida particular, na qual a sua ambição egocêntrica raiva a egoísmo de Manfredo, como na vida pública, na qual, enquanto cientista, se tornou o responsável pela máquina de morte mais poderosa criada até então. (...)

Um dos biógrafos de Oppenheimer, depois de citar o parágrafo de Proust, comparou-o a uma declaração do próprio Oppenheimer perto do fim da vida, numa conferência em parte patrocinada pelo Congresso para a Liberdade Cultural, uma organização anticomunista fundada (pela CIA) após a guerra:

Até hoje, e ainda mais nos tempos da minha adolescência quase infinita, mal agi, mal fiz alguma coisa ou deixei de fazer alguma coisa, fosse ela uma artigo sobre física ou uma palestra ou ler um livro, como conversar com um amigo, amar, que não suscitasse em mim uma grande sensação de repulsa e de erro. (...) Acabou por se me revelar impossível (...) viver com outra pessoa, sem perceber que o que eu via era apenas uma parte da verdade (...) e, numa tentativa de me libertar e ser um homem racional, tive de compreender que as minhas preocupações sobre o que eu fazia eram válidas e importantes, mas que não constituíam a história toda, que tinha de haver outra maneira de as ver, porque as outras pessoas não as viam como eu. E eu precisava que elas as vissem, precisava delas.

[in Uma História da Curiosidade de Alberto Manguel, no capítulo 'Que consequências têm as nossas acções']

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Fascinam-me -- e estão muito para além do meu entendimento -- as ténues fronteiras entre o bem e o mal, entre a razão extrema e a loucura, entre a perfeição e a arte da destruição, entre a defesa da paz e a apologia da guerra. E, também, entre a aleatoriedade dos acasos e o arrumado rumo da história (seja ela a história colectiva ou a individual).
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Oppenheimer: The Man Behind the Bomb -- A "Countdown to Zero" 




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A canção intitula-se Lost in August, interpretada por Jenos (de 5th Blood) e é apresentada como Song of the atomic bombing of Hiroshima

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Caso vos apeteça espraiar o espírito por territórios mais leves, desçam por favor que, abaixo há um postal de amor e, a seguir, há 3 vídeos em que se ouve Menguel de viva voz a falar de alguns autores e a mostrar a casa onde vive, nomeadamente a sua própria biblioteca.

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2 comentários:

ECD disse...

Excelente post. Tenho inveja de quem escreve assim. Escreve depressa e (muito) bem e....mais do que isso, não é uma "funcionária da escrita certinha", escreve com arte


Já agora, porque isto de traduções tem que se lhe diga, a tradução de Pedro Tamen para a Relógio d'Água "Do lado de Swam" (e dos outros volumes do "Em busca do tempo perdido) é magnifica.

Anónimo disse...

Hiroxima e Nagasaqui foram dois monstruosos crimes de guerra que mereciam ter sido levados ao Tribunal de Nuremberg. Mas, como a justiça à época era a dos vencedores, os responsáveis (onde se incluiria o então PR norte-amercicano) nunca foram beliscados. A decisão da utilização das duas bombas atómicas, com os efeitos que se conheciam, implicou a morte de civis - designadamente crianças, mulheres e idosos, entre outros, de forma deliberada e consciente. E a reacção subsequente, em Washington foi de euforia!! Esta tragédia sempre me repugnou. Um belo Post, este seu.
P.Rufino