sexta-feira, agosto 01, 2014

Uma mulher solitária em toda a sua nudez (- ou uma história ainda mais estranha)


No post abaixo já me interroguei sobre o que leva gente inteligente que é tida por boa gente a agir como se de bandidagem encartada se tratasse. E já falei da regulação-ceguinha e da comunicação social-papagaia. E do cherne que agora age como um esmoler. E já deixei mais uns quantos desabafos.

Hoje está a dar-me para o sentimento. 

Mas, enfim, isso é a seguir. Aqui, agora, vou partir para outra. Quando isto me acontece, vou à aventura, sem saber para onde vou. Não sei se vos diga que venham comigo porque não garanto que vá por bons caminhos.





Nos dias de muita solidão, a minha alma fica inquieta. Sinto frio, enrolo-me em écharpes que desdobro como se fossem cueiros e eu um bebé que nenhum colo abriga. Dobro-me sobre mim própria, ouço os pássaros e o sopro das árvores, espero que um canto venha de dentro da terra para me embalar.

Mas não há alento que me acuda. A inquietação invade o meu corpo. Tenho medo. Imagino-me velha, sozinha, doente e abandonada. Ninguém chorará a minha ausência. Há quantos dias aqui e nem uma voz, nem um afago. Será assim até ao fim dos meus dias?


A minha solidão alimenta o meu desânimo.

Já não choro. O choro tem que ter um motivo, querer despertar compaixão ou agredir quem nos agride. Quando se está sem ninguém, as lágrimas secam, tal como seca a saliva que elanguesce os lábios. Tudo seca. O corpo seca. Os meus seios que ninguém contempla ou toma nas mãos secam. Os meus cabelos secam, tristes, incertos. O meu ventre, o meu triste ventre, onde ninguém navega, secou, há muito que perdeu as marés, a espuma luminosa que sabia a mar.

Mas outros dias há, raros, raros, em que um sol mais alegre, um sopro de vento nas árvores que levante uma música alada, um salto mais atrevido do gato, me despertam e me levam a querer sentir o prazer de estar viva.

Nesses momentos, desabituada que estou de me controlar, saio pelos caminhos como um loose cannon, e vou à toa, desatinada, imprevisível como uma louca inocente.

Aconteceu no outro dia e vou contar-vos.

Comecei a correr e o gato à minha volta, eu nua, o gato assustado, e eu a rir, livre, pássaro solto, bicho sem dono.

Depois o gato deu um salto, saltou o muro e eu, sem pensar, peguei no largo lenço que ficara caído no chão, enrolei-o à volta do corpo, afoita subi a árvore junto ao muro, e, louca, louca, saltei.

Do lado de lá, o gato olhava-me, nervoso, pêlo eriçado. Estranha eu nos seus territórios, estranha eu mulher doida, umas vezes toda silêncio e sombras e agora tão infantil e sorridente. E estava sem medo, a vida a correr-me louca nas veias, o cabelo a voar à minha volta como uma alegria sem razão.

Da casa vinha uma música. Lá de dentro. Uma música estranha. Crianças cantando? Anjos brincando? Ou a alucinação de uma louca desbragada que saltava muros, voava como os pássaros, dançava com gatos?

Sem cuidados, quase nua, entrei na casa. É uma casa abandonada, bela e decadente. Fui avançando devagar. Fui vendo as paredes sem tinta, o soalho desgastado, as portas altas com a bandeira oca. Ah que beleza uma casa abandonada. Espreitei por uma das janelas. O mato lá fora mal se via pelo vidro quase fosco de tão sujo. A voz soava, eram anjos, eram, e eu, sem medo, andando pela casa assombrada.

O gato caminhava a meu lado, silencioso, inquieto. 

Então, vi um vulto. Não parecia ser deste mundo. Seria a mulher que vira na varanda? Não sabia. Um vulto branco olhando-me com um olhar branco.

O gato deu um salto e depois atirou-se para o chão, como que querendo deixar de ver.

Fiquei parada. Esperei. Noutros dias teria ficado gelada, morta de medo. Naquele dia não. Ousada, louca, inocente.

Era uma mulher muito jovem, rosto quase de criança. Não disse nada. Segurava um brinquedo e eu aproximei-me para o ver melhor. Sem deixar de me fitar, ela estendeu-me o brinquedo, os lábios entreabertos. O corpo coberto de branco, virginal e impudica, a oferecer-me o seu brinquedo.

Fiz-lhe uma festa na mão como se faz um afago a uma criança ou a um animal desconhecido. 

Depois ela deu-me a mão, levou-me até a uma casa de banho de azulejos verdes e reparei como esta divisão da casa estava tão estranhamente limpa.

Encheu a banheira e esperei. Num canto da banheira estava outro brinquedo. Pegou nele e, sem uma palavra, deu-me.

Enquanto a banheira se enchia, fui brincando com a figurinha colorida. Depois puxou o pano que me cobria e eu fiquei nua, sem vergonha.

Então, levou-me para dentro da banheira, entrou também na água, vestida, colocou o brinquedo aos meus pés e começou a lavar-me. Deixei.
O meu corpo há muito tempo que estava carente, ansiando por um toque humano, por um gesto de atenção, que alguém me lavasse com desvelos mil.
De olhos fechados, cabeça inclinada para trás, senti a água morna a envolver-me o corpo, as suas mãos gentis a lavar-me o pescoço, os braços, o peito, as pernas.

A seguir, saíu da banheira, ajudou-me a sair, secou-me, depois mudou de roupa, voltando a vestir uns estranhos vestidos e aventais brancos e, levando-me pela mão, sentou-me, nua, e começou a secar-me o cabelo. Gosto que me mexam na cabeça. Tão bom.

Reparei que o gato espreitava atrás da porta. Descarado, a cauda empertigada,  todo ele exibia a sua vadiagem. Tive vontade de sair a correr para o apanhar, insultá-lo, gato descarado, sem vergonha, seu bandido que me espreitas e desafias!, mas deixei-me estar entregue às mãos da ninfa bondosa, etérea e branca.

Quando acabou de me pentear, voltou a conduzir-me. Era o seu quarto. Procurou uma roupa igual à sua, vestiu-me, e eu, submissamente deixei-me vestir. Abotoou com cuidado cada botão, ajeitou as fitas, e eu sentia os mamilos arrepiados debaixo do algodão branco, e então vestiu-me uma saia franzida e ajeitou o franzido e eu pensei, estou sem cuecas, mas não achei mal, depois colocou-me uma touca também branca, e ajeitou os bicos da touca, e depois olhou-me com aquele seu olhar abandonado.

Pensei, eu devia agradecer os cuidados que ela está a ter comigo e, então, aproximei-me e beijei os seus lábios. Estavam mornos e sabiam a amoras. Ela deixou que eu a beijasse mas era como se o seu corpo estivesse muito longe dali.

Quando acabei de a beijar, o gato olhou para mim e soltou um miado como se gritasse de horror. Depois saíu a correr e foi pôr-se a gemer na varanda. Quando ia aproximar-me da janela para o ver, a mulher de lábios com sabor a amoras puxou-me pela mão e pôs-se a meu lado em frente a um espelho. O meu rosto tinha-se transformado. Não me reconheci. Tinha perdido muitos anos, toda eu era inocência e espanto. Mas o mais estranho é que estávamos quase iguais e, de facto, não consegui perceber qual das duas era eu.


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A música é Gallows pelas CocoRosie

As fotografias são da autoria de Steven Meisel

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Relembro: a seguir a este post, há desabafos e interrogações sobre a natureza humana, sobre a impunidade, sobre a cegueira, sobre a inércia. É o BES, os homens do Espírito Santo, o Durão, o Carlos Costa, os deputados, os pseudo-jornalistas e toda esta triste sina portuguesa. E o novo comissário europeu, a tal mulher que Juncker tinha pedido para a sua corte.

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E, por agora, por aqui me fico. 
Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma boa sexta-feira.
Se puderem, divirtam-se. 
Ah, é verdade: cuidado com os gatos..

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