segunda-feira, maio 27, 2013

Mia Couto vence o Prémio Camões 2013 - um prémio para a reinvenção da língua portuguesa. A mestiçagem e a poesia da língua de Camões em festa! Grande prémio para o abensonhador de estórias!



Mia Couto, quase a fazer 58 anos, moçambicano, biólogo e escritor
- e giro todos os dias!






Aurorava. O sol dava as cinco. As sombras, neblinubladas, iam espertando na ensonação geral. No topo das árvores, frutificavam os pássaros. Toda madrugada confirma: nada, neste mundo, acontece num súbito. A claridade já muito espontava, como lagarta luzinhenta roendo o miolo da escuridão. As criaturas se vão recortando sob o fundo da inexistência. Neste tempo uterino o mundo uterino. O céu se vai azulando, permeolhável. Abril: sim, deve ser demasiado abril. Agora, que a aurora já entrou neste escrito, entremos nós no assunto.




Toda a estória se quer fingir verdade. Mas a palavra é um fumo, leve de mais para se prender na vigente realidade. Toda a verdade aspira ser estória. Os factos sonham ser palavra, perfumes fugindo do mundo. Se verá neste caso que só na mentira do encantamento a verdade se casa à estória. O que aqui vou relatar se passou em terra sossegada, dessa que recebe mais domingos que dias de semana.




Não sou homem de igreja. Não creio e isso me dá uma tristeza. Porque, afinal, tenho em mim a religiosidade exequível a qualquer crente. Sou religioso sem religião. Sofro, afinal, a doença da poesia: sonho lugares em que nunca estive, acredito só no que não se pode provar. E, mesmo se eu hoje rezasse, não saberia o que pedir a Deus. Ou não se dará o caso de Deus ter perdido fé nos homens? Enfim, meu gosto de visitar as igrejas vem apenas da tranquilidade desses lugarinhos côncavos, cheios de sombras sossegadas. Lá eu sei respirar. Fora fica o mundo e suas desacudidas misérias.




*

Os textos foram escolhidos ao acaso e são o início de três 'estórias abensonhadas', a saber 'O poente da bandeira', ' O cachimbo de Felizbento' e 'A velha engolida pela pedra' - um dos muitos livros abensonhados de Mia Couto.

As imagens são pinturas de Miguel Barceló, pintor espanhol que muito tem pintado África.

Referências anteriores no UJM ao novo Prémio Camões podem ser vistas aqui.

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(Ainda cá volto)

2 comentários:

Anónimo disse...

Olá,

Mia Couto é, já há muitos anos, um dos meus escritores preferidos.
Além disso, pelo seu percurso de vida, sensibilidade e frontalidade, é também um dos meus seres humanos preferidos.
Da sua beleza física (quem disse que os homens não podem ser lindos de morrer?), dos seus olhos de um azul impossível, do carinho e simpatia com que trata os seus leitores nem vale a pena falar...
Tive um encontro feliz (e para mim inesquecível) com o Mia Couto há cerca de onze anos.
E acho que este Prémio Camões só peca por tardio!

E a propósito das escolhas felizes deste ano, até na Igreja, que refere num dos seus posts de hoje, deixo aqui uma bela transcrição:

No início do livro 'Mar me quer' Mia escreve assim:

«Deus é assunto delicado de pensar, faz conta um ovo: se apertarmos com força parte-se, se não seguramos bem cai.»

Lindo, não é?


Antonieta

Maria Eduardo disse...

Parabéns Mia Couto! Faço minhas as palavras da leitora Antonieta, quando diz que este Prémio Camões atribuído a Mia Couto só peca por tardio!
Um beijinho grande.