terça-feira, maio 28, 2013

Acho que este móvel não é um pechiché. Estava no quarto dos meus avós mas tinha função de pequena estante, não de toucador.


No post abaixo festejo o Prémio Camões para Mia Couto. Mas, agora, bem mandada como sou, aqui estou a dar resposta a uma pergunta.


Perguntou-me a Leitora Antonieta se não herdei nenhum pechiché. Não sei bem, creio que o móvel que escolhi do quarto dos meus avós e que mostro abaixo não será um pechiché



Será um pequeno pechiché? Creio que não mas não sei.
Estava no quarto dos meus avós e tinha livros nas prateleiras de lado e molduras com fotografias no interior, interior esse que tem portinha de vidro, espelho atrás e prateleira de vidro a meio.
Sempre gostei imenso deste pequeno móvel.
O banquinho com forro de veludo também veio de lá.
O veludo ainda está impecável mas está a precisar de arranjo pois, como se vê, o estofo está descaído.

Agora está no 'estúdio' de que ontem falei e, por isso, os bibelots desandaram quase todos para dentro da estante/vitrine para evitar (mais) desastres



Lembro-me que quer estes meus avós, quer a minha outra avó, que era viúva desde nova, quer os meus pais antes também (agora já não têm, têm uma cómoda muito grande) tinham móveis muito bonitos a que chamavam toucadores, uns móveis que tinham como que três partes. A do meio tenho ideia que era um pouco mais baixa, não sei bem, e havia gavetinhas, e o móvel  tinha três espelhos, o do meio era fixo mas os dos lados eram móveis e eu gostava que a minha mãe se sentasse no banquinho e eu penteava-a, fazia-lhe mises e depois orientava os espelhos para que ela se visse de lado e de costas. Também penteava a minha prima mais velha, fazia-lhe penteados elaborados e ela adorava (quando eu era pequena queria ser cabeleireira, acho que já contei; agora limito-me a cortar o cabelo a alguns membros da família, e a mim também ). 

Creio que é aos toucadores que se chamava pechichés, não é?

Não sei o que aconteceu a esses móveis. Eram grandes, eu não tinha onde os colocar, com muita pena tive que abdicar deles. Tenho dúvidas que os meus primos os quisessem pois nenhum deles acha graça a móveis antigos. Aliás, nenhum deles liga muito a coisas de decoração, acham graça a eu ter querido ficar com tudo o que é tralha. Mas depois gostam de ver as coisas integradas na minha casa, nem reconhecem as coisas. Um dia destes perguntei à minha prima se não reconhecia o rádio. Olhou como se estivesse a olhar para um meteorito caído sabe-se lá de onde. Perguntei-lhe 'Mas então não te lembras do rádio grande do avô...?'. Lembrou-se, 'Ah, pois é. Já nem me lembrava de tal coisa', sorriu e seguiu com a conversa, sem emoção. É natural: é médica, mal estaria se fosse de emoção fácil, estava sempre num pranto.

Aquele movelzinho ali em cima também estava mais escuro, mais baço. Foi todo raspado e levado à sua cor original. Depois foi tratado com cera virgem. Está macio como seda.

Quem tratou destes móveis foi um senhor que trabalha numa aldeia perto da nossa casa. Inspirei-me neste homem quando escrevi uma história (a história de Ana que afinal era Eva) com um marceneiro a que dei o nome de Tomás. Este, de verdade, também é alto, magro, muito digno, um senhor. Era carpinteiro e há pouco tempo fez um curso de restauro na Câmara. E, com arte, carinho e vagar, agora recupera móveis numa ínfima oficina, com instrumentos ancestrais. Podem imaginar o que aquilo me encanta. Se eu pudesse, tinha sempre móveis a arranjar só para ver como ele passa as mãos pela madeira, como estuda o veio, como fala dos cuidados a ter, para ver as misturas que ele faz, os frascos de cera.

A última vez que lá fomos, estava a restaurar um piano antigo (de umas pessoas de Lisboa que têm aqui uma casa - dizia ele, com ar grave, como se o facto de serem de Lisboa introduzisse uma responsabilidade acrescida ao trabalho), e o piano estava meio desmanchado e ele, pessoa sensível, contou que andava até enervado, a dormir mal, que era trabalho de grande complexidade e que ali não tem as melhores condições para trabalhos tão exigentes. Quase me ofereci para ficar ali, de ajudante.

O cuidado com que ele raspou a madeira no interior dos meus móveis para descobrir a cor original, a forma como lixou com muito cuidado para não ferir o veio, a perícia com que efectuou alguns enxertos que foram necessários nos sítios em que a madeira já estava fraca e que o obrigaram a vários ensaios para arranjar madeira com veio e cor compatível - eu bebia, maravilhada, a sua voz grave, séria, competente (escuso de vos dizer como o meu marido ficava impaciente, não tem paciência para conversas que envolvam muitos pormenores, punha-se a fazer-me sinais ópticos para eu me vir embora, e avançava para a porta, para ver se eu tinha medo que ele se fosse embora e me deixasse apeada... Debalde).

E, por saber como estes móveis - que já têm tantos anos, tantas histórias, e que foram usados por pessoas que me foram tão queridas, e que, mesmo agora, têm sido tratados com tantos cuidados - olho para eles com muito carinho.

Neste pequeno móvel tinha um ferro de engomar de uma das minhas avós, daqueles que levavam carvão lá dentro. Tinha também um pequenino, de ferro, muito pesado, dos que se punham a aquecer em cima das brasas. Mas isso para os pimentinhas era um desafio e estávamos sempre com medo que se magoassem. E tinha uns pequenos castiçais que, mal dava por eles, já andavam misturados com os brinquedos. E havia umas peças de vidro que eu estava sempre a ver a hora em que iam partir tudo. Agora está tudo encafuado no antigo guarda-fatos. Daqui por uns anitos poderei voltar a pôr as coisas onde ficam melhor. O mais novo já está com nove meses. Daqui por uns três anos já deve ser atilado. Terá então quase quatro anos, a irmã terá quase seis, o ex-bebé terá cinco e o primo mais velho terá quase oito. Isto se não nascer, entretanto, mais algum - coisa de que não estou certa.


*

Coisas
sombras de vida
pousadas nos móveis
ocupando paredes
guardadas
nas gavetas do tempo
coisas
memórias tácteis
feitas nossas
nós mesmo
pedaços de naturezas mortas
vivas
em nós



[Poema de Joaquim Castilho - a quem muito agradeço - num comentário a um post mais abaixo]


*****

PS: Se descerem um pouco mais, até ao post seguinte, poderão juntar-se à festa: Mia Couto é o Prémio Camões 2013.

Hoje vinha para falar do Servidões do Herberto Helder, e da Granta, nº1, e até tirei uma fotografia ao livro junto à minha blusinha primaveril e à revista junto aos meus sapatinhos encarnados (os que me conhecem já sabem que devem dar-me algum desconto: não sou lá muito boa da cabeça). Mas isto do Prémio Camões alterou-me os planos. Fica para amanhã (isto se não houver outro hapenning, que estes dias andam recheados que nem ovos).

Mas gostava de vos convidar ainda a virem comigo até ao meu Ginjal e Lisboa, a love affair. Hoje, por lá, é também dia de Mia Couto, dia grande, dia de festejar o prémio dado a este escritor de sorriso suave que reinventa - como quem brinca - a língua de Camões. A música que se lhe segue é, naturalmente, música de Moçambique.


*****

Fico-me por aqui. 
Tenham, meus Caros Leitores, um dia muito feliz. Eu hoje também estou muito feliz. 
Os prémios este ano, todos eles, enchem-me de alegria. 
Este ano toda a gente anda a fazer boas escolhas (e agora até me vieram à cabeça as escolhas da Igreja, que também estão a ser escolhas felizes - eu sei que uma coisa não tem nada a ver com a outra mas ocorreu-me. Tomara que houvesse agora eleições legislativas; quem sabe não ia acontecer uma feliz surpresa?)



5 comentários:

Anónimo disse...

Olá,

Ainda bem que a minha pergunta deu origem a um post tão lindo!
Muito obrigada!!!
Eu não sou especialista em pechichés, mas do que me lembro o da minha avó tinha gavetas na parte central, e nas laterais uma gavetinha e uma porta.
Seria assim um misto de toucador e cómoda, digo eu.
Mas esse seu móvel é muito bonito e original, e foi tratado com muito carinho pelo seu amigo artesão.

Beijinho e uma bela terça-feira.

Antonieta

JOAQUIM CASTILHO disse...

Olá UJM!

Permitam-me a minha modesta contribuição para o tema pechiché que pacientemente retirei da Net:
"O pechiché, no português de Portugal, é um móvel. Sim, aquele que está nos nossos quartos, com um espelho a meio.
Pechiché vem do francês psyché, um móvel com um grande espelho inclinável, para reflexão inteiriça.
Os "psyché" estavam na moda nos anos 20 e 30 do século passado, bem ao estilo "art déco".
A este móvel deu-se o nome de Psyché (Psiquê, em português).
Psiquê é, na mitologia grega, a bela mortal por quem Eros, o nosso conhecido Cupido, se apaixonou – espetou-se acidentalmente por uma das suas próprias setas, o pobre.
Importa salientar aqui a diferença entre um psyché e uma coiffeuse. Uma coiffeuse é um móvel que surgiu muito antes, no período regência (1700-1730), com a feminização do mobiliário. As coiffeuses apresentam um espelho mais pequeno, muitas vezes tríptico.
Enfim, o que temos em nossas casas não será um psyché, mas sim - é uma suposição - uma coiffeuse ou, em português,...um toucador."

um abraço

Maria Eduardo disse...

Olá UJM,
Que belas recordações me trouxe! Na casa dos meus pais havia um toucador lindo de madeira de cerejeira, fazia de cómoda, tinha pedra mármore branca, por cima na parte central tinha um espelho grande e de lados gavetinhas. O espelho era contornado com talha vazada, muito bonita.
Gostei muito de saber os pormenores com que mandou tratar do seu móvel, de tanta estimação.
Um beijinho grande e obrigada por esta partilha cheia de ternura.

dbo disse...

Cara UJM,
curioso que sempre ouvi falar em toucador e até penteadeira, mas na realidade não me passava pela ideia o pechiché ou psiché. Como se aprende todos os dias! Acho, aliás, belíssimo o facto de se recorrer ao mito de Eros e Psique, com ciúmes de Afrodite, pelo meio, e um fim feliz com o nascimento de Voluptas (o prazer), para se atribuir a nomenclatura da peça.
Realmente será um prazer mirarmo-nos em antigas peças de mobiliário recuperado pelo engenho de artísticas mãos.

Devo confessar que também adoro as velharias rejeitadas por familiares que depois acabam por esboçar alguma inveja das peças recuperadas. Para tudo é necessário gosto, imaginação e… algum dinheiro disponível.

Votos de muita saúde e felicidades.

Fernando Silva disse...

Eu acho que é um pechiché sim, toucador como diz mas também conhecido por cristaleira (dada a presença dos espelhos: um fixo - o do meio e dois laterais móveis) e por isso, tambem "penteadeira": o sítio onde a senhora se senta no banquinho (que sempre faz parte integrante do móvel) para se pentear. Rica a língua portuguesa... :)