segunda-feira, abril 29, 2013

Onde Sotto Aguiar é vencido pela Drª Sá Borges - a quem ele, quando fala dela com os colegas (todos homens, claro), costuma tratar depreciativamente por Santa Sá


Poderia repetir banalidades: nem tudo o que parece, é. Ou: não julguemos os outros pelas aparências. Ou não tomemos por evidências o que não são senão aparências (ou: não tomemos por aparências o que são, de facto, evidências). Poderia também dizer que, sempre que alguma coisa acontece, é porque há razões para isso, razões que o justificam, que o desculpabilizam. Ou poderia dizer que é o destino. Ou coincidências. Ou que não há coincidências. Ou tretas dessas.

Mas não digo. Não sou dada a teorias, muito menos a teorias sem fundamento, a conversas politicamente correctas, a banalidades sem qualquer valor prático. Constato, evito julgar.

(Reservo os meus julgamentos para comportamentos que causam malefícios objectivos a muita gente por parte de quem deveria, antes, tudo fazer para lhes levar benefícios: maus políticos, maus governantes, por exemplo.)

De resto, interrogo-me muitas vezes: o que não se sabe é como se não existisse?

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Turn me on, se faz favor




E, no entanto.

Aqui há uns dias, a conversa azedou de vez. 

Sotto Aguiar defendia uma posição, a Drª Sá Borges defendia exactamente o contrário: discutiram acesamente, sem tréguas, a luta reacendeu-se várias vezes, os colaboradores ouviam as vozes irritadas, andavam intrigados com tanta discussão.

Depois, ele sempre com ar agastado, sem uma palavra, ela sempre serena como se nada a molestasse. No entanto, provavelmente para não dar o braço a torcer - porque era impossível que não visse que estava a defender um disparate - foi ele quem, obstinadamente, levou a dele adiante.




Ela achou uma leviandade mas acatou. Ele ficou contente. Estas lutas eram um suplemento de motivação para ele, traziam-lhe a adrenalina que ele tanto apreciava; além disso, levar a melhor sobre aquela maçadora fazia-o sentir mais poderoso.

Contudo, na primeira oportunidade, agindo de acordo com a determinação dele, ela provocou uma situação que toda a gente reconheceu como absurda. Quando lhe perguntaram porque tinha feito tal disparate, uma coisa inconcebível, perfeitamente contrária à prática usual da empresa, ela tranquilamente respondeu que, embora contrariada, tinha actuado de acordo com a decisão dele. Fez-se silêncio na sala, Sotto Aguiar gelado, posto a ridículo, os outros constrangidos, ela como se não fosse nada com ela.

Mais tarde, e tal como ela esperava, ele apareceu no gabinete dela, fechou a porta, vinha transtornado. Acusou-a de deslealdade, de desonestidade, que ela o tinha descredibilizado, que não era a primeira vez, que era lamentável que houvesse atitudes assim entre colegas, que, apesar de já esperar tudo dela, aquela tinha sido demais, que o tinha ridicularizado, que aquilo tinha sido escusado - enfim, estava vermelho de raiva, furioso, acusava-a de tudo. Ela ouviu e, com a frieza que lhe é reconhecida nestas situações, manteve-se serena. Sorria até, como se achasse graça a tanta exaltação, como se estivesse a assistir a uma representação que não lhe dissesse respeito.

Depois levantou-se e disse, Há pessoas com fraca capacidade de abstracção, que só percebem perante evidências. Ao menos agora já percebeu?

Sotto Aguiar levantou-se também, pronto para sair desarvorado. Não vale a pena, com pessoas assim não vale a pena. Fique com o que fez, que lhe faça muito bom proveito, disse ele, e, se pudesse, despedia-a nesse mesmo instante, punha-lhe um processo, qualquer coisa. Se fosse um homem talvez lhe desse um murro na cara. Assim, levantava-se e deixava-a a curtir a sua estúpida pequena vitória.

Sorrindo, sempre sorrindo, ela ficou entre ele e a porta e, com aquela voz calma e superior que tanto o irritava, disse-lhe, Mas para quê esse nervosismo todo, doutor? Há vida para além disto, sabe? Nem as vitórias aqui são muito importantes, nem as derrotas o são. Relativize, doutor, relativize. Receba umas e outras com humildade.

Sotto Aguiar pensou, Esta gaja está a precisar de uma lição, ah está, está! Numa altura destas, ainda tem a lata de vir para aqui com filosofias baratas. É parva, a gaja, é mesmo muita parva!

Mas, inesperadamente, quando ia a sair disparado, ela puxou-o pela mão e disse, Espere. Deixe-me fazer uma coisa que já ando para fazer faz tempo.

Ele olhou-a admirado mas apenas por um instante. Encostando todo o seu corpo ao dele, ela pôs-lhe uma mão na nuca, puxou a cabeça dele para ela e beijou-o na boca.

No primeiro momento, ele ficou sem reacção mas logo a seguir correspondeu. Passou-lhe os braços em volta do corpo e beijaram-se apaixonadamente. 

Quando acabaram, ele olhou-a interrogativamente nos olhos e ela a ele. Depois riram-se. Ela, à laia de esclarecimento, repetiu, Tinha que fazer isto, era uma coisa que estava para ser feita há muito tempo.

Ele puxou-a com força, abraçou-a quase com violência, beijou-a com ardor, a língua numa sofreguidão.

Quando pararam, ela disse tranquilamente, Calma… o mundo não vai acabar hoje, doutor, temos muito tempo… Ele riu-se.

Depois ela perguntou-lhe, Mas onde é que íamos? Dizia você que…?

Ele não disse nada, preso ao olhar sedutor dela. Mas ela prosseguiu, Lealdade, desonestidade, patati-patatá...? Não era...? E toda ela era malícia, desafio, irreconhecível.




Ele riu e já a queria agarrar de novo, vingar-se, o corpo num desatino, Sá… não me provoque… E agarrou-se outra vez a ela, ofegante, aos beijos.

Depois ela disse, Mais baixo, respire baixo, olhe que ainda nos ouvem. 

Ele riu-se, Só espero que a Noémia não apareça por aí à minha procura.

Sá imitou-a, Sôtôr tem a sua mulher ao telefone…

Ele riu-se outra vez, Sá… você está mesmo a querer festa…

Sá riu-se e olhou-o abaixo da cintura. Quero, quero mesmo, e basta olhar para si para ver que está prontinho para ela.

Sotto Aguiar deu uma gargalhada. Mas quem havia de dizer…? Quem a viu e quem a vê…

Ela riu. Quem a vê? Mas acha que já viu alguma coisa…?, maliciosa de novo, provocante.

Rendido, Ai é? Há mais? Se há, eu quero ver! E já se estava a preparar para a agarrar de novo

Sá empurrou-o devagarinho, Calma, SôTôr… Primeiro vai ter que me dizer o que é que fez para o merecer…

Sotto Aguiar sorriu ao de leve, já não estava habituado a estes jogos de sedução, nem estava a reconhecer na maliciosa mulher que tinha à sua frente a Santa Sá, como, jocosamente, se referia a ela quando conversava com os colegas. Além do mais, ainda tinha um secreto receio de que isto fosse mais algum golpe dela para o apanhar em falso, para depois gozar com ele, para o atirar ao tapete.

Mas depois resolveu entrar no jogo, Não fiz mas ainda vou fazer. Quando é que podemos começar?


*

A música lá em cima é Turn me on e é interpretada por Norah Jones e Jamie Cullum.

O texto de hoje vem no seguimento de textos anteriores, sendo que o último deles pode ser visto aqui.

*

Se me permitem, gostaria de vos convidar para virem comigo até ao meu Ginjal e Lisboa onde, continuando num formato atípico, dedico o dia de hoje a Jorge de Sena, a vida e a obra, nas palavras dele e de outros. A música está a cargo de um grande intérprete, o pianista de jazz Brad Mehldau.

*

E apenas me resta desejar-vos uma bela semana a começar já por esta segunda feira. 
Divirtam-se, está bem?

1 comentário:

O Puma disse...

... simplificando...

e em síntese

prefiro uma tosta de pão alentejano
em liberdade
que uma salsicha alemã
de cócoras