quarta-feira, junho 13, 2012

Leda e o Cisne - e uma história caliente no Dia de Sto. António


Música, por favor

Melody Gardot - La vie en rose



Com este tempo quente não é possível usar os meus mantos de veludo, e o que eu gosto de mantos de veludo, veludo macio e pesado, verde musgo, azul ultramarino, grenat ardiloso, ou até, mesmo, um mel dourado com sabor a alecrim. Não, com este calor, não é possível. Queria vestes luxuosas, folhos armados com tule, rendas sumptuosas, sedas com brilhos discretos e lavados, queria espartilhos que alguém desapertasse com vagar, queria meias com ligas, meias com costura, queria cabelos em cachos sobre os ombros e uma fina camada de pó de arroz para disfarçar os rubores. Mas como, como com este calor?

Gosto de poder conservar o pudor, gosto que me percebam a virtude. Mas como, como com este calor?

Ainda Junho está a meio e já eu não aguento as vestes e as capas e as meias e tudo o resto. 

Vou até ao bosque que lá está mais fresco. Preciso de um pouco de sombra. O excesso de luz aquece-me o espírito, desvenda-me a alma e eu tenho segredos que precisam de recantos sombrios.

Mas, ainda assim, aqui no bosque, este calor...

Não está ninguém, só eu, e a sombra protege-me a timidez.

Baixo, então, com prudência nos gestos, uma manga, ainda ninguém, depois desaperto o botão de cima do vestido. Ninguém. Depois outra manga, e desaperto o resto. Deixo que o vestido escorregue. Devagar. Respiro o ar doce do campo. Reclino-me aqui, sobre as roupas macias, sinto a frescura que vem das raízes. A terra é fresca.

Depois tiro o resto. Mas a virtude é mais forte. Cubro-me, então, ao de leve, com o cendal macio, transparente como se fosse um sedoso lençol apenas imaginado, como um véu nupcial. 

Fecho os olhos, deixo-me ir, não sei se durmo, se apenas sonho, e da terra já não vem frescura mas uma humidade morna que me envolve. E sinto, então, que uma sinuosa plumagem começa a percorrer o meu corpo. Podia gritar, dizer que não, podia abrir os olhos e tentar perceber quem assim se passeia pelo meu corpo, mas não. Deixo-me ficar, em silêncio, de olhos fechados. Apenas a minha boca se abre, sinto-o.

Depois, mais tarde, ouço um pesado bater de asas, e passos que se afastam. Espero, imóvel. 

Quando finalmente apenas ouço o silêncio que vem da terra, abro os olhos. 

O cendal desapareceu. Talvez o tivesse apenas imaginado. Talvez alguém o tivesse levado. Apenas duas penas brancas, grandes, macias, me cobrem os seios. Sorrio.

Vou voltar mais vezes e tomara que esteja sempre este calor.

*

Leda e o Cisne - Michelangelo


Leda serenidade deleitosa,
que representa em terra um paraíso:
entre rubis e perlas, doce riso;
debaixo de ouro e neve, cor de rosa.

Presença moderada e graciosa,
onde ensinando estão despejo e siso
que se pode por arte e por aviso,
como por natureza, ser fermosa:

fala de quem a morte e a vida pende,
rara, suave; enfim, Senhora, vossa;
repouso nela alegre e comedido.

Estas as armas são com que me rende
e me cativa Amor; mas não que possa

despojar-me da glória de rendido.


*


Um baque surdo. A asa enorme ainda se abate
sobre a moça que treme. Em suas coxas o peso
da palma escura acariciante. O bico preso
à nuca, contra o peito o peito se debate.

Como podem os pobres dedos sem vigor
negar à glória e à pluma as coxas que se vão
abrindo e como, entregue a tão branco furor,
não sentir o pulsar do estranho coração?

Um frémito nos rins haverá de engendrar
os muros em ruína, a torre, o teto a arder
e Agamemnon, morrendo.

                                                                     Ela tão sem defesa,

Violentada pelo bruto sangue do ar,
se impregnaria de tal força e tal saber
antes que o bico inerte abandonasse a presa?


Leda e o Cisne - Rubens

**

O primeiro poema é de Luís Vaz de Camões e o segundo é de William Butler Yeats (desconheço o tradutor). 

Já disse também de minha justiça lá para os lados do meu Ginjal e Lisboa. Ao som de Wagner, hoje temos palavras desvendando enseadas secretas em volta da Ilha de David Mourão-Ferreira. Se quiserem lá ir, vão de mansinho para não estragarem a festa, está bem?

**

E é isto, meus Caros, que me apraz dizer no Dia de Santo António. 

Tenham, meus Caros, uma quarta feira divertida, feliz, na companhia do vosso Zeus ou da vossa Leda ou de alguém disfarçado de Cisne ou, até, de um cisne de verdade (que ele há gostos para tudo...)!

6 comentários:

Maria disse...

Amiga:
A sua versão de "Leda e o Cisne" é maravilhosamente bela.
Claro que também gostei das versões de Michelangelo, Rubens, Camões e Yates.
Tudo visões de homem. A sua, a única feminina, é a mais suave, mais sensual.
Fez-me voltar.
Vai ter que ser devagarinho.
Abraço grande
Mary

Tété disse...

Olá Tazinha!
Também eu aprendi o que é o "cendal" e que bem que a minha amiga já o usou aqui hoje.
Mas este dia é mais dado para os rescaldos dos Santos Populares, não acha? Mais soft e não com este cariz Camoniano que se aprofunda na nossa alma e nos faz bater mais depressa o coração.
Só me quis meter consigo para não deixar de lhe desejar um feliz dia de StºAntónio.
Beijos e abraços

Anónimo disse...

Olá cara UJM:

Sedutora e sensual recriação de "Leda e o Cisne" ao som de La vie en rose (influência da constelação de gémeos ou do santo casamenteiro?).
Assim desnuda na relva deitada, não haverá homem ou santo que resista a não transformar-se em cisne. E tantos foram os seduzidos, inspirados artistas, por esta Leda lasciva.

E tenha uma noite feliz e caliente
Abraço amigo da
Leanor formosa e segura

Um Jeito Manso disse...

Olá Mary,

Volte, pois. Devagarinho mas bem disposta, com vontade de se distrair e divertir. Para todos é melhor tê-la forte e feliz.

Quanto à minha Leda, veio-me à cabeça, não sei explicar porquê, quando li a palavra 'cendal' que o Leitor DBO usou e que achei uma palavra maravilhosa.

Mas a Leda do Michelangelo e do Rubens são maravilhosas. Quando me ocorreu a ideia e fui rever estas duas imagens, a ideia do texto saíu de seguida. Enquanto escrevia sentia-me assim, como uma delas. Ainda mais fácil, portanto, a sensualidade da escrita.

Fiquei muito contente de a voltar a ver por cá, já dando os seus passinhos de dança, devagarinho, é certo, mas já temos a Mary de volta e isso é o que interessa.

Um beijinho.

Um Jeito Manso disse...

Olá Teresa-Teté,

Escrevi o texto na noite de Sto. António, em pela hora de festa, de cantarolices e bailaricos nas velhas e escusas vielas de Alfama. Na hora em que as palavras se formaram, por volta da 1 e tal da manhã, todos os desalinhos são admissíveis...

Claro que os meus Leitores só me lêem de dia, já em tempo de rescaldo (ou ressaca...). Mas à hora a que me leram também já a Leda estava vestidinha, compostinha, de olhos castos e baixos, bordando, lendo um livrinho de receitas.

E tive um dia de Sto António muito bom, descansado, e à tarde e à noite, rodeada de gente nova e brincalhona. Uma festa das boas.

Espero que o seu dia também tenha sido muito bom.

E um beijinho, Teresa-Teté!

Um Jeito Manso disse...

Olá Leanor, formosa e segura,

Quis colocar uma música, uma de que gosto imenso que é 'Sleeping in the devil's bed' mas cada vez mais as m´suicas são restritas apenas ao youtube e não permitem a divulgação noutros canais, como, por exemplo, nos blogues. O tempo que eu ontem perdi a vers e descobria uma versão que permitisse. Mas não. Tive que desistir. Como gosto imenso da Melody Gardot, acho que tem uma voz sensual, lembrei-me dela e escolhi este tema (de que gosto imenso) para acompanhar o que escrevi.

Esta do romance com o Cisne não lembra a ninguém, não é...?

Mas é um daqueles mitos que tem graça e que se presta a exercícios de imaginação e sensualidade.

E acho que uma Leda semi-coberta por um cendal tem graça. E um cisne a afastar-se levando, de lembrança, o cendal também tem, não tem?

Dias e noites felizes também para si, Leanor!