terça-feira, março 27, 2012

Eva ou o esplendor da poesia na relva


Música, por favor
(no botãozinho mais pequeno da esquerda em baixo, para não saltarem para o youtube)

Paganini - Sonata nº 6 para violino


Não há dia em que, ao levantar-se, Eva não abra, de imediato, a grande janela que dá para a varanda e espreite o dia.

Assim que vê o céu antevê o tempo que vai estar, a temperatura e, logo, lhe acodem ao pensamento várias ideias, planos, disposições, estados de espírito.

Depois do banho e, enquanto toma o pequeno-almoço, Eva pensa na sua indumentária para o dia, o tom dominante que será claro se estiver numa de peace and love, ou colorido se estiver virada para a acção, ou monocromático de cores fortes se quiser impor a sua vontade, ou cinzentos, castanhos (o que é raro) se estiver vagamente indeterminada, ou escuro se estiver para nem admitir conversas. Também pode ser um branco e preto com fronteiras bem definidas se quiser perturbar a mente de alguém.

A maquilhagem e os adereços tais como brincos, colar, anel, pulseira (tudo escolhido na perspectiva de que o que é bom pouco basta) acompanharão a tendência do vestuário, os sapatos e a carteira obviamente farão pendant. Mas também pode acontecer que esteja para a brincadeira e, nesse caso, a carteira e os sapatos farão um inesperado contraste com o vestuário e apenas se conjugarão com a cor do baton (ou, até, apenas com a cor da lingerie que, isso sim, é indispensável).


Hoje Eva vestiu um vestido aparentemente austero, de riscas. Para o caso de ser necessário, levará na mão um casaco preto, fluido, uma malhinha muito fina. Contudo, vendo bem, perceber-se-á que há ali qualquer coisa de subversivo. Talvez o decote, talvez a suave textura do tecido que convida ao toque, talvez a cor do baton que combina ostensivamente com o tom dos sapatos, uns Christian Louboutin encarnados bordados a preto, obviamente de tacão bem alto.


Apanhou o cabelo com displicência, sabe que as indisciplinadas ondulações apenas valorizarão um pouco mais o aspecto de bad girl. Depois de sair voltou atrás: a écharpe, claro. Finíssima, quase transparente, comprida, encarnada com leves desenhos pretos.

Ao vê-la sair de casa, quem a conheça dirá que o dia vai ser complicado, Eva vai para arrasar - mas alguma folia não estará fora de questão.

Passada firme, rosto tranquilo mas decidido, feminina, lábios flamejantes, grandes óculos escuros, eis, então, que Eva sai de casa.

O carro arranca com suavidade. Eva estará certamente a ouvir música, provavelmente música barroca. Se tivesse aberto a janela, arrancado com vivacidade, provavelmente estaria a ouvir reggae mas, hoje, pela forma como curvou deslizando, a sentir o prazer da curva, provavelmente será violino, talvez Paganini.

Depois conduz até uma zona residencial, estaciona, toca à campainha, entra. Passado algum tempo sai e volta a entrar no carro. Desloca-se agora até à zona de escritórios com mais cachet da capital. O carro entra na garagem e só voltará a sair a meio da tarde.

Contudo, ligeiramente antes da grande movimentação da hora de almoço, alguém mais atento repararia que Eva sai do edifício, rápida, quase furtiva, o casaquinho escuro e fluido cobrindo o vestido, a écharpe esvoaçando, um saco de pele (Hermès) em vez da elegante pequena carteira, outros sapatos, agora uns quase baixos. Soltou o cabelo que esvoaça, despenteado. Nem parece a mesma.


Se alguém a seguisse repararia que vai apressada, olha o relógio e anda sem ver com quem se cruza. Dirige-se, então, a uma rua murada quase escondida, um grande portão. Entra, pois, no Jardim botânico.

Aí os movimentos passam a ser outros, mais distendidos, a cabeça ergue-se, vê-se que Eva aspira longamente o ar puro e vegetal.

Anda como quem muito bem conhece cada recanto. Vira à direita, desce, entra na vegetação, procura o pequeno lago, procura um certo banco.

Jardim Botânico de Lisboa

Senta-se, reclina-se, atira a cabeça para trás, inspira longamente. Solta devagar o ar. Depois tira um pequeno livro do saco, lê. Lê e pára de ler, olha em frente, respira fundo, lê.

Um pouco depois, um sobressalto mas quase como se fosse um sobressalto aguardado. Alguém parece ter surgido do nada. Um homem - moreno, grisalho, interessante, de barba, descontraidamente vestido, calças claras, blusão de cabedal, camisa desportiva azul clara - atira-se para o banco. Na mão traz um saco de papel.

Eva retira então do saco guardanapos de papel e, ali mesmo, no banco de jardim, entre os dois, põe a mesa. Sandes, caixas de salada, sumos, um iogurte para ela. Conversando, rindo, almoçam tranquilamente. Vê-se que ambos apreciam verdadeiramente aquele picnic assim improvisado; dir-se-ia, aliás, que é usual fazerem-no. No final, limpam a boca e há elegância nos seus gestos; a seguir, Eva arruma meticulosamente as embalagens vazias, os talheres de plástico, os copos, os guardanapos, tudo no saco de papel.

Depois, ele parece convencê-la a fazer qualquer coisa, levanta-se, puxa por ela. E ela, sorrindo, vai. Ele procura então um local abrigado dos olhares, plano, limpo. Apalpa o chão, 'está seco, ainda bem que não chove...' e sorri, com ironia e doçura. Abraça-a e, depois, puxa por uma ponta da longa écharpe e abre-a como quem estende um lençol numa cama. Puxa por Eva, que não oferece qualquer resistência, uma vez mais parece ser coisa habitual. Depois despe o casaco e dobra-o para servir de almofada, descalça os sapatos. E então, Eva, a intrépida, é apenas Eva, a dócil, e deita-se na relva, num jardim público. Com um gesto de pudor ajeita o vestido, e pensa que em dias assim mais valia vir de calças, e ali fica a olhar a copa das árvores, o céu por cima. O homem vira-se de barriga para baixo, beija-a ao de leve no rosto, depois pega no livro e lê em voz alta, não muito alta, de facto quase sussurrada, enquanto Eva fecha os olhos, deleitada, entregue a um dos mais supremos prazeres, ouvir o seu amor a dizer poesia:

                      Está de pé sobre as brancas dunas. As ondas conduziram-na
                      e os ventos empurraram-na. Está ali, na perfeição redonda
                      da oferenda. E como que adormece no esplendor sereno.
                      Diz luz porque diz agora e és tu e sou eu, num círculo
                      só. Está embriagada de ar como uma forte lâmpada.

                      É uma área de equilíbrio, de movimentos flexíveis,
                      um repouso incendiado, a vitória de uma pedra.
                      Abrem-se fundas águas e um novo fogo aparece.
                      Que lentas são as folhas largas e as areias!
                      Que denso é este corpo, esta lua de argila!

                      Nua como uma pedra ardente, mais do que uma promessa
                      fulgurante, a amorosa presença de uma mulher feliz.
                      Nela dormem os pássaros, dormem os nomes puros.
                      Agora crepita a noite, as línguas que circulam.
                      Crescem, crescem os músculos da mais íntima distância.


Se Paganini já chegou ao fim, então, por favor,
George Gershwin - The man I love por Ella Fitzgerald


Ele olha-a, sorri, procura aprovação, ela também sorri, mostra que gostou. Depois Eva põe uma mão à volta do pescoço de Miguel e puxa-o para si. Dois namorados, nem mais, nem menos.

Alguns minutos depois, levantam-se, sacodem as roupas - Eva sacode com cuidado a sua écharpe, coloca-a em volta do pescoço branco e ajeita-a com gestos femininos, veste o casaquinho, ajeita-o, despedem-se. Ela desce, faz o caminho de retorno, ele sobe. Uns segundos depois, Eva olha para trás. Miguel também. Como adolescentes dizem-se-se adeus, sorriem.

...  §  ...
O poema é  'A mulher feliz' de António Ramos Rosa.
...  §  ...
[E por poema: se estiverem numa de poesia e palavras em volta de uma fotografia, sugiro que cliquem aqui para irem até ao Ginjal e Lisboa. Hoje tenho Ruy Belo que acompanha com Mendelssohn]
...  §  ...

E tenham, meus Caros, uma gloriosa terça feira!

16 comentários:

Anónimo disse...

Magnífico Paganinni, um exímio violinista do período Romântico. Nas sua bizarrias, ou extravagâncias, fazia constar ter um pacto com o Diabo. A verdade é que o seu corpo só foi autorizado a ser enterrado num cemitério após 5 anos de ter falecido.
Esta Eva decididamente “interessa-me”. Estou curioso com o percurso seguinte.
Esta foto do Jardim Botânico de Lisboa (Lisboa tem tanta coisa bonita para se visitar, para ver, para apreciarmos!) assim de repetente fez-me lembrar aqueles jardins de Monet (faltam as nenufares).
Tenho igualmente uns bons CDs da extraordinária Ella. Que bela voz! Para ouvir ao fim de uma tarde de Verão, ou numa noite quente a olhar as luzes de uma cidade, sentado numa qualquer varanda. Ou a ver o mar ao longe. É o que me ocorre com ao escuta-la.
P.Rufino

A Matéria dos Livros disse...

Lindo!

Maria disse...

Jeitinho amiga:
Eva é uma mulher inteligente, sabe o que quer, sabe conquistar e manter.
O bom gosto não se aprende. Nasce com a pessoa. Ela já nasceu elegante, em todos os sentidos. No vestir, nos acessórios (poucos mas bons), no cuidado das écharpes. Dão sempre jeito, transformam a toilette, dão imenso jeito, para mostrar, ou não mostrar, para ocupar as mãos, disfarçando gestos a mais. Serve, para estender no chão.
Aquele piquenique a dois, foi elegante. O cuidado de estender os guardanapos, os pequenos cuidados.
Depois, o romantismo de um beijo, uma bela poesia, um último sorriso, um adeus.
Como Eva sabe seduzir!
Beijinhos e continue. Vou tentando responder, mas como já lhe disse, até à Páscoa, tenho os hábitos mudados.
Outra coisa, que me agradou: Paganini. Adoro George Gershwin .
Vou acabar. My little "Man I Love", está a chamar-me.
Beijinhos
Maria

Isabel disse...

Esta mulher é surpreendente!
Hoje gostei desta Eva a atirar para o romântico e contemplativa da natureza.

Gostei da carteira-saco. Bem linda!

Um abraço

Anónimo disse...

Cara UJM:

A primavera é fecunda, no amor, na palavra e na natureza - o Jardim botânico o cenário ideal para o amor e a poesia…. Mas esta relva trouxe-me à memória tanta coisa…. Esquecendo “o plural” que nada tem de esplendor nem de glória, e seria bom que definhasse com a seca, esta Eva e o seu esplendor fez-me recuar ao tempo de uma inocência juvenil, quando vi pela primeira vez o filme de Elia Kazan, que adoro, e recordar os versos de William Wordsworth.

E enquanto faz o caminho de regresso um sorriso interior aflora-lhe ao rosto - recordava a inveja pungente que escapava dos olhares de quem passava ao ver a felicidade que jorrava de “Eva e o esplendor da poesia na relva”. E isso fazia-o feliz. Não estava verdadeiramente interessado em saber o quanto era admirada e cortejada na vida mundana, bastava-lhe sentir que Eva o tornava milagrosamente feliz.
Iria ler-lhe “esplendor na relva” de Ruy Belo in O Bosque Sagrado.

Ela fica fascinada com o homem que lia, com o seu corpo, com o seu rosto e com a forma como ele se exprimia - a dizer poesia. - E ela sabe, e muito bem, que ler um poema pode ser um instante injusto -. A poesia é algo que têm em comum só eles a compreendem, é o que os une, é esta afinidade profunda que a faz correr para os seus braços, cogitava, absorta e feliz, enquanto fazia o caminho inverso.
Iria pedir-lhe para ler “esplendor na relva” de Ruy Belo in O Bosque Sagrado.
E tenha uma esplendorosa terça feira . Um abraço da
Leanor formosa e segura

ERA UMA VEZ disse...

Eva regressa a casa, procura no saco, num descair de ombro clássico, a chave que (sabemos todas) se esconde misteriosamente entre mil coisas.

Uf! consegue finalmente.

A porta prende um pouco. Não abre.
Um papel perfumado cor de arminho, dobrado em quatro é a razão do atrito.
Debruça-se curiosa.
Lê.
E o seu rosto empalidece, de súbito os olhos perdem brilho e o seu conhecido glamour parece envolto em súbito e denso nevoeiro...

Um Jeito Manso disse...

Caro P. Rufino,

Se eu soubesse o que vai Eva fazer a seguir... E não sei mesmo, não estou a fazer género. Escrevo, enfeito o texto com imagens, escolho uma música que me pareça que vai a calhar com o ambiente e, depois, no dia seguinte estou a zero. Até que me sento aqui e a história vem.

Parece que estou a armar-me...? Mas é assim mesmo.

Gosto muito de Paganini e gosto de Ella. E gosto de escrever e gosto de ler os vossos comentários. A vida só é chata se deixarmos que seja, não é? Eu, pelo menos, divirto-me com isto. A viver as situações de verdade ou a imaginálas, há sempre motivos de diversão. Ou, então, sou eu que tendo a alienar-me com muita facilidade...

O Jardim Botânico é lindo, lindo e aquele lago tem recantos à volta e tem uma quietude que apelam mesmo à respiração profunda, ao namoro, à leitura. Os jardins de Monet ao pé deste ficam a anos luz! (estou a brincar...)

Obrigada pelas suas palavras, sempre tão inspiradoras.

Um Jeito Manso disse...

Olá, Leitora,

Muito obrigada. Esse 'lindo' soube-me muito bem, tanto mais vindo de uma exigente seleccionadora de leituras.

Fiquei contente.

Um Jeito Manso disse...

Mary, elegante e feminina Mary,

Gosto dos seus comentários. Como nos compreendemos bem. É isso mesmo, o que diz com as écharpes, com o charme, com o romantismo, com tudo.

Fico sempre curiosa de saber o que achou e, quando leio, fico contente porque entende perfeitamente o que escrevo, não lhe escapa nenhum pormenor.

E também temos gostos semelhantes, nomeadamente a nível da música.

Bons apaparicos para o seu little man you love. Tem uma avó toda modernaça, ele!

Beijinhos para todos.

Um Jeito Manso disse...

Isabel,

Imaginei que esta Eva, mais contida e bem comportada seja mais o 'seu género'. Mas vamos lá ver se ela se consegue manter assim, romântica, giraça...

(A toilette estava gira, não estava..? Se não fosse tudo tão caro, comprava uns sapatinhos e uma sacola assim para mim...).

Obrigada pelas palavras, Isabel, e um abraço.

Um Jeito Manso disse...

Leanor, formosa, segura e cheia de graça,

'Eu sei que Deanie Loomis não existe
mas entre as mais essa mulher caminha
e a sua evolução segue uma linha
que à imaginação resiste

(...)


Mas em Deanie prossegue a primavera
e vejo que caminha entre as mais'

Perfeito.

Assim pensa Miguel enquanto vê Eva avançar, feliz, cheia de luz e de primavera.

É a poesia, a informalidade, a cumplicidade, a admiração mútua, são coisas assim, simples e terrenas, que unem Eva e Miguel. Tudo o resto são detalhes.

Obrigada, Leanor, por trazer aqui a ideia destas esplendorosas palavras. É que agora que as recordo, pergunto-me de que outra forma poderia Miguel referir-se a Eva senão justamente assim.

Fiquei mesmo contente com isto.

Um Jeito Manso disse...

Erinha, mulher de Deus...,

Li o que escreveu e até fiquei apreensiva. Estava eu tão cheia de primavera, contagiada com a primavera de Eva e acontece uma coisa que a deixa preocupada, um nevoeiro a tombar sobre a sua vitalidade...? Será...?

Tenho que pensar bem nisto, credo. Não estou nada com vontade de trazer problemas a Eva...?

Agora até estou preocupada... um papel... o que será?

Ora esta, e eu a pensar que ia tudo correr às mil maravilhas...!

Um beijinho, Erinha, agora deixou-me aqui a pensar...

Anónimo disse...

Eva é uma personagem cativante.
Imagino-a num encontro com o Gaspar. Que corrida o “pobre” levaria. Eva trata-lo-ia como ele merecia ser tratado. Com indiferença.
Isto ocorreu-me, o dito Gaspar, ao ter lido o que o personagem proferiu em Luanda, a propósito da opinião da benemérita Agência de Rating Fitch sobre a nossa Economia: ”etc, etc...Julgo que a opinião da Fitch é- uma opinião respeitável (!!!) - mas eu não estou de acordo, etc, etc”! Eva, seguramente, nunca se tentaria por alguém subserviente.
Por Deus, não está nada a armar-se! Muito pelo contrário. Continue!
E tenha uma muito boa noite,
Vou ler um pouquinho, antes de me entregar “nos braços de Morfeu”,
P.Rufino

ERA UMA VEZ disse...

minha querida

infelizmente a vida é assim.
Quando parece que vamos ter primavera, surge...o "inferno".

Desculpe minha amiga, continue a sua história de encantamento...e esqueça a minha interferência.

É que uma grande tristeza paira por aqui e a Jeitinho não tem culpa.

Um Jeito Manso disse...

Erinha,

Fui ali fazer a minha empreitada no Ginjal com este bilhete debaixo da porta atravessado. Se calhar hoje ainda não irei lidar com a situação porque estava com a disposição ainda tão cheia de Botânico que não sei se consigo 'fazer a agulha' para o susto...

Talvez amanhã. Uma pessoa não pode virar as costas aos sobressaltos, não é...?

Mas, Erinha de Deus, será uma ameaça? Que medo... Uma chantagem? Coisa assim...? Ai...

Um Jeito Manso disse...

Ah, Caro P. Rufino, que você com essa desperta a Eva que há em mim...

Já me está a dar maus instintos...

(E quem diz Gaspar, diz qualquer dos outros...). 'Me aguarde...'

Hoje estou mais numa dessas do que numa de sustos como o que a Era uma Vez aqui deixou...