terça-feira, setembro 14, 2010

Eu, pescador, me confesso



De manhã vou à procura do isco, já sei quem o tem de melhor qualidade mas tenho que procurar, ver os preços, ver se estão bem vivos. Depois levo-o para casa, ponho-o num sítio fresco, um trapo velho de serapilheira meio aberto, areia, alguns limos, e assim, com cuidado, chega sempre à tarde ainda fresco e rijinho.

Depois limpo as canas, oleio os carretos, vejo o nylon, arrumo os anzóis, limpo os baldes, lavo e ponho a secar os trapos, arrumo a cesta. É um trabalho silencioso. Estou sozinho em casa.

A minha mulher sai de casa antes das 6 para limpar escritórios e às 9 vai para casa de uma senhora. De tarde vai para outra senhora e, às 6 da tarde, para outros escritórios. À noite, quando chega a casa, não estou. Trata da casa e faz o meu almoço do dia seguinte, faz o almoço também para ela, que guarda numa caixa para levar. De manhã arranja-me um lanche para eu levar para a pesca. Quando a pesca não corre de feição ou quando está muito mau tempo, vou mais cedo para casa e ainda nos encontramos acordados. Na maior parte dos dias, quando chego, já ela dorme ou na cama ou no sofá, a televisão ligada.

Temos uma vida boa.

Fiquei desempregado há uns anos e não consegui voltar a trabalhar mas agora já me deram a reforma. Na altura andei a sentir-me muito mal, tinha vergonha, sentia-me um vadio, fugia de ver os outros, já sabia que me iam perguntar ‘Então? Ainda nada?’ e eu, ‘Nada’ e encolhíamos os ombros. E eu sentia-me muito infeliz e sentia que toda a gente me achava um infeliz. E perguntavam-me se eu tinha tentado isto e aquilo como se eu fosse preguiçoso e gostasse de estar sem trabalho. Mas é que eu chegava mesmo a sentir-me preguiçoso e ficava com vergonha também disso mas não tinha forças para sair dessa agonia em que andava. Não sabem que, nessas alturas, a falta de esperança é tão grande que nos tira a acção.

Mas agora já me deram a reforma e eu já me sinto outra vez uma pessoa normal.

E, então, preparo as minhas coisinhas todas para a pesca, sento-me à mesa enquanto ouço as notícias e almoço, lavo a minha louça (não quero sobrecarregar a mulher), sento-me um bocado a ler o jornal que vinha a embrulhar o isco (mas vejo cada vez pior e aquilo também é sempre a mesma coisa, a crise, a política, o futebol, já não quero saber disso para nada; mas passo sempre os olhos pelos jornais), depois vou até à cama e passo pelas brasas, levanto-me, faço a cama, e, finalmente, o momento por que espero: pego nas minhas coisas e lá vou para o meu cais, sempre o mesmo, um pontão ali no Ginjal.

Tenho que ir cedo não vá algum forasteiro ficar-me com o meu lugar. Os que me conhecem, respeitam-me.

Chego, o meu lugar está à minha espera. É o sítio mais lindo do mundo. Instalo-me com vagar. O sítio certo para os baldes, tiro água do rio, é aí que guardo os peixes que apanho, molho o trapo do isco, ajeito as coisas, preparo a linha, olho à volta, tudo certo. Um silêncio muito bom, ninguém à volta. Vem um cheiro bom do rio. À noitinha fica mais fresco e o cheiro é diferente, para melhor, um cheiro mais forte, quase misterioso, como misteriosas são as sombras que vagueiam pelo cais.

Estou de frente para Lisboa, conheço tudo, os monumentos, sei o que está em obras, sei o movimento na Ponte, já sei as luzes que acendem primeiro, dali vejo tudo. Ali sinto-me um homem forte e até feliz.

São as melhores horas do meu dia, vigio o alto da cana, vejo se pica, enrolo a linha, volto a lançar, sempre na maior expectativa. Gosto de ver o peixe a dançar no anzol, prateado, brilhante, no ar, Lisboa ao fundo.

As minhas costas já se curvam mas, se tenho dores, nem as sinto. Uma vez, há muitos anos, ainda o meu cunhado era vivo, fomos todos à pesca para Sesimbra. Aí é que foi, apanhámos cada um o seu balde cheio de peixe. Aqui não dá muito mas vai dando alguma ciosita. É o que comemos e chega muito bem. A mulher até chegou a levar uma vez peixe frito para as colegas. Quando chego a casa ainda vou amanhar o peixe. Faço isso com muito cuidado para não acordar a mulher e limpo tudo porque ela diz que já nem pode ver escamas.

Já apanhei uma vez um peixe que devia ter para cima de um quilo, deu para fazer uma caldeirada com tomate e pimento e, o que sobrou, para fazer filetes.

Todos os dias estou à espera de voltar a ter essa sorte. A minha mulher está sempre a dizer que eu sou um optimista. Pois sou. De que serve não ter esperança? E o ar do mar faz tanto bem.

Tenho mesmo muita sorte.
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